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Os últimos anos têm se revelado particularmente complicados para os profissionais de saúde, que para além de sentirem a urgência de verem as suas carreiras mais recompensadas, são alvos de um desgaste físico e mental que se regista desde os primórdios da pandemia da COVID-19 em Portugal. Neste sentido, Lúcia Leite, Presidente da ASPE, fala à Mais Magazine sobre as atuais reivindicações dos enfermeiros e do trabalho desenvolvido pela sua associação na defesa dos direitos destes profissionais de saúde.

Qual a missão e as linhas orientadoras de ação da ASPE?

A  Associação  Sindical  Portuguesa  dos  Enfermeiros – ASPE – foi constituída em 2017   para   representar   os   enfermeiros   que trabalhem por conta de outrem, nos setores  público,  privado,  cooperativo  e  social.  Somos  um  Sindicato  de  nova  geração e de baixo custo para os associados, focado  exclusivamente  na  resolução  dos  problemas dos enfermeiros e que recorre às  novas  tecnologias  para  assegurar  serviços  de  proximidade.  Criamos a ASPE  porque os enfermeiros não se reviam nos sindicatos  ligados  às  centrais  sindicais,  pela  influência  óbvia  das  forças  político-partidárias  nas  suas  ações  reivindicativas. Assim, criamos um sindicato livre de qualquer ligação ou apoio para podermos desenvolver a  nossa  atividade,  com  total  independência,  em  prol  do  reforço  dos  direitos e da defesa dos interesses coletivos dos enfermeiros.

Que tipo de iniciativas/ programas a ASPE leva a cabo de forma a promover e  defender  os  direitos  dos  enfermeiros?

O   sindicalismo   em   Portugal   perdeu   representatividade   e   descredibilizou-se   por vários fatores, dos quais destaco dois: a  ação  sindical  subjugada  aos  interesses  político-partidários  e  a  aplicação  generalizada dos acordos coletivos a todos os trabalhadores,    independentemente    de    estarem ou não sindicalizados. Ora,  se  por  um  lado  os  enfermeiros  perceberam  que  os  sindicatos  tradicionais  condicionavam  as  suas  ações  reivindicativas  em  função  da  cor  política  do  Governo  do  momento,  por  outro  habituaram-se a usufruir dos resultados da negociação  coletiva  sem  que  para  isso  fosse necessário estar sindicalizado. Nos  últimos  anos  assistimos  a  uma  crescente  desregulação  laboral  que  impõe um sindicalismo novo e forte, que se reinvente para ter grande representatividade e ser eficaz. Por isso a ASPE trabalha sobretudo em duas frentes – no empoderamento  dos  enfermeiros  através  do  conhecimento dos seus direitos e no desenvolvimento de propostas fundamentadas e construtivas que atribuam à ASPE o papel de parceiro essencial na alteração das condições de trabalho dos enfermeiros.

Atualmente,  quais  são  as  principais  reivindicações dos enfermeiros?

Em  2019,  com  a  Greve  Cirúrgica  que  reivindicou a alteração da carreira tendo por base uma proposta da ASPE, os enfermeiros  conseguiram  que  o  Governo  voltasse  a  reconhecer  3  categorias  nas  carreiras,  com  um  conteúdo  funcional  reforçado  e  o  direito  a  progredir  às  categorias superiores, independentemente do  seu  vínculo  laboral  ou  de  já  estarem  ou  não  integrados  nas  carreiras.  Uma  mudança  de  paradigma  que  quando  estiver completamente regulamentada vai facilitar  a  mobilidade  entre  as  instituições  do  SNS  e  também  o  regresso  dos  enfermeiros  que  se  encontram  a  trabalhar fora do país, sem terem que integrar a 1ª posição.

Por isso para os associados da ASPE as prioridades são as seguintes:

• Eliminar o limite de 25% à progressão para a categoria de especialista;

•  Anular  a  existência  de  posições  automaticamente   criadas   (virtuais)   com   efeitos a 2019, que estão a criar inversões remuneratórias entre enfermeiros;

•  Corrigir  as  injustiças  do  descongelamento  de  carreiras  em  várias  situações  bem  identificadas,  onde  as  normas  aplicadas apagaram pontos, colocando esses enfermeiros em posições remuneratórias inferiores a outros colegas;

•  Alterar  a  tabela  remuneratória  que  não  cumpre  o  Regime  de  Vinculação,  de  Carreiras  e  de  Remunerações  dos  trabalhadores em funções públicas;

• Negociar e publicar o 1º Acordo Coletivo  de  base  aplicável  aos  enfermeiros  para de uma vez por todas acabar com as diferenças  de  tratamento  entre  os  vínculos  privados  e  públicos  no  SNS,  mas  também regular a organização de tempo de trabalho e os horários que atualmente  não  cumprem  a  legislação  laboral  em  vigor.

O  SNS  enfrenta  tempos  muito  conturbados,  com  a  realização  de  greves  pelos profissionais de saúde que lutam pelos  seus  direitos,  o  desgaste  físico  e  mental  e  a  notória  falta  de  médicos.  Na  sua  ótica,  quais  os  principais  problemas  que  afetam  atualmente  o  SNS  e  que  medidas  poderiam  ser  tomadas  para reverter o panorama atual?

O  SNS  enfrenta  o  maior  desafio  à  sua  existência desde que foi criado! Não  podemos  esquecer  que  a  Pandemia  por  COVID-19  teve  um  grande  impacto  na  desestruturação  dos  serviços,  alterou  a  organização  interna  das  instituições  e  provocou  um  grande  desgaste  nos  profissionais.  Também  temos  que  compreender  que,  em  simultâneo,  está  a  ocorrer  a  maior  reforma  estrutural  do  SNS  que  se  iniciou  com  a  alteração  da  Lei de Bases da Saúde em 2019. Mas para mim,  o  mais  preocupante  é  estarmos  a  assistir ao maior ataque movido por grupos  organizados  com  interesses  profissionais e privados. Quem atua assim, não se importa de destruir, nem de prejudicar a  população  para  obter  a  satisfação  dos  seus desejos!

Em  Portugal  não  há  falta  de  médicos,  nem de enfermeiros! Há um SNS “médicocêntrico”, que desaproveita a capacidade instalada de muitos outros profissionais e que se mantêm na dependência  da  organização  médica  em  muitas atividades que podem ser asseguradas autonomamente por outros profissionais,  nomeadamente  pelos  enfermeiros especialistas. Por  exemplo,  nas  Unidades  de  Saúde  Familiares  (USF),  a  alocação  da  vigilância da saúde da mulher e saúde da criança aos Enfermeiros Especialistas, poderá implicar   um   decréscimo   de   consultas   médicas,  na  área  da  saúde  da  mulher,  entre  400  a  530  consultas/ano/médico  e  na área da saúde infantil entre 350 a 440 consultas/ano/médico  (não  estão  incluídas   consultas   por   doença).   Com   esta   medida  de  articulação  interna  nas  USF  liberta-se o Médico de Família para realizar mais consulta de vigilância da doença crónica  e  para  que  se  possa  responder  a  mais  utentes  que  atualmente  estão  sem  Médico de Família. Quando falamos de vigilância da saúde da  mulher  e  saúde  da  criança  estamos  a  falar  de  promoção  da  saúde  e  prevenção  da  doença  e  não  de  consultas  para  diagnóstico e tratamento de pessoas doentes, que  esses,  sim,  necessitam  de  ser  observados por um Médico de Família! Trabalhar em equipa e em rede é a solução para melhorar o acesso e a eficiência do SNS e a articulação entre os vários profissionais  potencia  a  otimização  dos  recursos  instalados.  É  isto  que  todos,  profissionais  e  cidadãos,  precisamos!  As  pessoas  querem  ter  acesso  aos  cuidados  sempre  que  necessitam  deles  e  os  profissionais  devem  poder  exercer  com  autonomia as suas competências sem constrangimentos organizacionais ou poderes instalados do século passado!

Numa altura onde são mais as interrogações do que as certezas, que mensagem  de esperança  gostava  de  deixar  aos enfermeiros do país?

Aos enfermeiros recomendo que se interessem pela defesa  dos  seus  direitos  e  se sindicalizem, porque nunca houve tantos  abusos,  tantos  atropelos  à  lei,  tanta  impunidade  dos  responsáveis  institucionais  e  políticos.  Juntem-se  à  ASPE,  porque juntos vamos construir o futuro!