
Num país marcado pelo envelhecimento populacional, pelo agravamento das desigualdades sociais e pela crescente pressão sobre os serviços públicos, seria expectável que a Saúde ocupasse um lugar central e ambicioso no Programa do XXV Governo Constitucional. Contudo, o documento apresenta-se como uma proposta vaga, ambígua e incapaz de responder à profundidade dos desafios que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) enfrenta. Faltam-lhe medidas concretas, metas claras e, sobretudo, um compromisso político firme com a consolidação do SNS como eixo estruturante da coesão social e garante do direito à saúde.
Apesar de reafirmar que o SNS permanecerá “no centro do sistema”, o Programa promove uma lógica de “complementaridade” entre setores público, privado e social que, na prática, abre caminho à mercantilização da saúde. Ao valorizar as parcerias público-privadas (PPP), as convenções com entidades privadas e a contratualização com unidades organizadas segundo modelos mistos de financiamento, institucionaliza-se uma lógica concorrencial que subverte os princípios fundadores do SNS. Esta orientação permite a drenagem de recursos públicos para operadores privados/sociais, sem assegurar mecanismos rigorosos de avaliação do impacto em saúde. O resultado é previsível: uma dualização crescente do sistema, onde os mais favorecidos acedem a cuidados rápidos e eficientes, enquanto os restantes enfrentam tempos de espera, ruturas nos serviços e cuidados fragmentados.
A descentralização da gestão do SNS, outro eixo do Programa, é apresentada como uma modernização organizativa, mas levanta sérias dúvidas quanto à sua exequibilidade. A transferência de competências para comissões regionais e autarquias, sem um modelo testado e sem garantias de financiamento sustentável, pode agravar as desigualdades territoriais e enfraquecer a autoridade normativa do Ministério da Saúde. Faltam planos de implementação, avaliação prévia de impacto e garantias de que estruturas locais terão a capacidade técnica e financeira para gerir serviços de elevada complexidade.
No plano laboral, o documento revela um preocupante alheamento da realidade dos profissionais de saúde. A ausência de propostas concretas para a revisão de carreiras, valorização salarial, reposicionamento remuneratório ou incentivo à fixação em zonas carenciadas ignora as causas profundas do êxodo profissional para os sectores privado e social ou para o estrangeiro. Em plena crise de recursos humanos, a ausência de uma política de motivação sólida e coerente compromete gravemente a sustentabilidade do SNS.
A aposta na saúde digital e na criação de um Registo de Saúde Eletrónico Único (RSEU) é, em teoria, positiva. No entanto, o Programa não reconhece que a transformação digital exige investimentos paralelos em interoperabilidade de sistemas, segurança de dados, formação de profissionais e literacia digital das populações. Sem estas condições, a digitalização corre o risco de aumentar a carga administrativa, dificultar o acesso das pessoas com menor contacto com tecnologias e levantar sérias questões de privacidade e confidencialidade clínica, sobretudo quando se prevê o acesso partilhado entre sectores.
No que diz respeito aos cuidados de proximidade – Primários, Domiciliários, Continuados e Paliativos – o Programa limita-se a enunciar intenções vagas, sem qualquer plano concreto de expansão de equipas, formação especializada ou reforço financeiro. Esta omissão é particularmente grave num tempo em que se reconhece, nacional e internacionalmente, que são estes níveis de cuidados que permitem prevenir internamentos, garantir dignidade no fim de vida e promover a centralidade da pessoa. A ausência de metas temporais e orçamentais traduz uma visão hospitalocêntrica, tecnocrática e desfasada das necessidades reais da população.
Finalmente, o modelo de financiamento centrado na “Saúde Baseada em Valor” e na “centralidade do utilizador” importa, de forma acrítica, lógicas empresariais que podem distorcer o sentido ético e relacional do cuidado. A tentação de medir tudo em indicadores de produção e custos ameaça desvalorizar contextos onde os resultados não se expressam em métricas simples, como acontece na Saúde Mental, nos Cuidados Paliativos ou na intervenção comunitária. Sem regulação efetiva e sem participação dos profissionais nos processos de contratualização, o risco é que se favoreçam áreas mais rentáveis, em detrimento de populações com necessidades complexas.
O Programa de Governo para a área da Saúde apresenta-se como um exercício de gestão administrativa, mais preocupado com a eficiência do que com a equidade, com o mercado do que com o bem comum. Ignora os alertas da comunidade científica, dos profissionais e das associações sindicais, que há muito denunciam a urgência de reforçar o SNS, estabilizar equipas, humanizar cuidados e garantir justiça territorial no acesso aos serviços.
Num tempo em que a saúde pública exige respostas éticas, estruturadas e centradas na pessoa, o que se esperava era um compromisso político claro com o investimento público, com a valorização dos profissionais e com a proximidade dos cuidados. Este Programa falha, em toda a linha, em garantir esse compromisso.
Daniela Cunha, Vogal do Conselho Fiscal da ASPE – Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros
