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A importância da valorização da carreira de enfermagem em Portugal surge como uma questão central para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e para o respeito pelos direitos dos profissionais que o compõem. O recente ´acordo histórico` firmado entre cinco sindicatos de enfermagem e o Ministério da Saúde expôs, de forma dramática, as falhas e limitações persistentes na política de valorização salarial e na progressão na carreira dos Enfermeiros. Sob uma análise mais profunda, torna-se evidente que este acordo, em vez de inaugurar uma nova era de reconhecimento para os profissionais de saúde se revela antes como um paliativo, incapaz de responder aos desafios estruturais que afetam a profissão. Sou um dos que entende que a questão da carreira dos Enfermeiros portugueses não se circunscreve apenas ao plano remuneratório. Entrelaça-se também com a qualidade dos serviços prestados, com a dignidade profissional e a justiça social, constituindo-se como um tema de importância inegável para a sociedade portuguesa.

Historicamente, a profissão de enfermagem carrega um peso significativo nas engrenagens do sistema de saúde. Os Enfermeiros portugueses, enquanto principais agentes da prestação direta de cuidados, são a linha de frente em situações de urgência, desempenhando um papel crucial na prevenção de doenças e na promoção da saúde e assegurando o acompanhamento contínuo dos utentes, desde o nascimento até ao final da vida. No entanto, este papel fulcral não tem sido acompanhado por uma correspondência justa em termos de progressão de carreira e de condições salariais. Os sucessivos governos, ao ignorarem as reivindicações legítimas desta classe, contribuíram para a erosão de um sistema que deveria ser exemplar na promoção da equidade e na valorização do mérito. A problemática é ainda ampliada quando se percebe que os sucessivos diplomas legislativos, em vez de corrigirem distorções, frequentemente as acentuam, criando um ambiente onde a desmotivação e o burnout proliferam.

A questão do mérito na carreira de enfermagem destaca-se como um ponto de tensão fulcral. A capacidade de progressão dos Enfermeiros tem sido bloqueada por uma série de medidas transitórias e de incoerências legislativas que desrespeitam as avaliações de desempenho e os percursos profissionais mais qualificados. Enfermeiros com avaliações de ´Relevante` ou ´Excelente` encontram-se, paradoxalmente, em condições similares aos que apresentam avaliações apenas ´Adequadas`, o que anula a função meritocrática das progressões e cria um sentimento de injustiça sistémica. Também a falta de uma valorização real das qualificações e das competências destes profissionais compromete não apenas a sua realização pessoal como também a qualidade do serviço prestado aos utentes. A premissa de que o reconhecimento profissional deve refletir o esforço, a experiência e o mérito de cada indivíduo é fundamental para garantir um ambiente de trabalho onde a motivação e a dedicação sejam mantidas – a arte de bem gerir a saúde!

Apesar da importância deste tema, frequentemente se percebe uma aparente atitude de resignação por parte de alguns Enfermeiros portugueses, que parecem preferir optar por um caminho mais fácil, aceitando uma posição secundária dentro do setor da saúde. Este fenómeno reflete-se no adágio “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”, sugerindo uma preferência por garantias mínimas, mesmo que insatisfatórias, em detrimento da luta por condições mais justas e condizentes com o real valor da profissão. Esta postura de conformismo não só enfraquece o movimento coletivo de reivindicação como também perpetua uma cultura de aceitação das desigualdades que, em última análise, prejudica toda a classe. Enquanto alguns Enfermeiros se contentam com melhorias pontuais e paliativas, a estrutura de fundo permanece inalterada, perpetuando-se as distorções que desvalorizam a enfermagem em comparação com outras carreiras da saúde.

A realidade atual denuncia ainda uma inversão das prioridades no seio das políticas públicas para a saúde. Enquanto os Enfermeiros veem as suas progressões bloqueadas e os seus salários achatados, as reformas anunciadas frequentemente privilegiam o equilíbrio orçamental em detrimento da valorização dos recursos humanos. Este desfasamento entre o discurso político e a prática efetiva é um indicador de uma visão míope, onde os custos a curto prazo são tidos em maior conta do que os benefícios a longo prazo de um sistema de saúde justo e sustentável. É importante notar que a remuneração justa dos Enfermeiros não deve ser vista apenas como uma questão económica, mas antes como um pilar essencial para a coesão social e para a dignidade do trabalho. Num momento em que o SNS enfrenta enormes desafios, incluindo a sobrecarga dos serviços e a crescente exigência de cuidados complexos considero urgente que se repense as políticas de carreira e se reconheça que sem profissionais motivados, qualificados e justamente valorizados, o sistema não será capaz de responder eficazmente às necessidades da população.

A situação torna-se ainda mais alarmante quando se observam as disparidades entre a carreira de enfermagem e outras carreiras da saúde. A falta de um distanciamento remuneratório proporcional entre diferentes categorias, a sobreposição de índices salariais e a ausência de salvaguardas para os profissionais mais qualificados denotam uma falta de respeito pela especificidade do trabalho dos enfermeiros. Esta ausência de diferenciação não só desvaloriza as competências especializadas, como ignora a natureza intrínseca da profissão, onde a prática direta, o contacto constante com o sofrimento e a responsabilidade pela vida dos outros exigem uma preparação e dedicação superiores. A tentativa de nivelamento por baixo, disfarçada de equidade, não promove justiça. Antes pelo contrário, perpetua as desigualdades e desincentiva o esforço individual e o aperfeiçoamento contínuo.

Para além das questões legais e remuneratórias, o problema da carreira de enfermagem toca num aspeto ético que transcende o simples cálculo económico. O reconhecimento dos direitos dos Enfermeiros, a sua valorização enquanto profissionais essenciais ao funcionamento do SNS e a correção das injustiças acumuladas são imperativos para uma sociedade que se pretende justa e solidária. A dignidade profissional não é um luxo, mas sim um direito e a falta de uma política séria de valorização traduz-se numa afronta não apenas aos Enfermeiros, como a todos os que dependem dos cuidados prestados por estes profissionais. Uma sociedade que não reconhece adequadamente os seus profissionais de saúde, que os sujeita a condições de trabalho desumanas e que ignora as suas reivindicações é uma sociedade que trai os seus próprios princípios de justiça e bem-estar.

A análise do ´acordo histórico` revela que o caminho para a valorização efetiva da carreira de enfermagem em Portugal ainda está por ser trilhado. As promessas de reformas e de correção das injustiças não se podem limitar a paliativos que suavizem o descontentamento. A verdadeira mudança exige uma revisão estrutural das políticas públicas, onde o mérito, a qualificação e o serviço prestado sejam realmente reconhecidos e valorizados. Apenas com uma abordagem integrada, que considere os Enfermeiros como pilares fundamentais do sistema de saúde, será possível construir um SNS que responda às necessidades dos cidadãos e que seja motivo de orgulho para todos os portugueses.

Por último, a luta pela valorização da carreira de enfermagem é também uma luta pela qualidade dos cuidados de saúde em Portugal. Profissionais motivados, reconhecidos e bem remunerados não são apenas uma necessidade justa para os próprios Enfermeiros, mas também para todos os que, em algum momento das suas vidas, dependem do seu cuidado. O ´acordo histórico` pode ter falhado em trazer a mudança que eu considero ser a necessária para a profissão de enfermagem em Portugal, mas o seu impacto não pode ser ignorado; ele acendeu uma chama de esperança e de reivindicação que não se apagará até que se faça justiça. Só assim será possível transformar o discurso em realidade, garantindo que o SNS não apenas sobreviva, mas prospere, baseado nos princípios de equidade, qualidade e respeito pelos seus profissionais.

Sérgio Serra

Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros