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Numa extensa entrevista dada à Mais Magazine, a advogada Claudete Teixeira fala sobre o seu especial interesse pela área do Direito de Família, a importância do advogado nas sociedades contemporâneas e do grave problema da morosidade da justiça portuguesa, sem esquecer a falta de direitos da mulher na advocacia que ainda se regista e da dificuldade em conciliar a vida pessoal com a profissional.

Diariamente são muitas as questões legais que necessitam da intervenção de um advogado, mas nem sempre isso acontece, levando os cidadãos a agirem por contra própria e, muitas vezes, e envolverem-se em problemas jurídicos. Na sua ótica, e aproveitando o facto de este mês se celebrar o Dia do Advogado (19 de maio), qual a importância que o advogado pode desempenhar nas sociedades contemporâneas?

O papel do advogado vai muito para além daquilo que aparece nos telejornais ou nos filmes. A nossa sociedade é feita de regras. Quase que, para cada ato que praticamos no nosso dia a dia, há uma norma que estabelece os limites e as condições em que podemos praticá-lo. O mundo do direito é infindável. Se muitas coisas são intuitivas e do conhecimento comum, muitas mais não o são. Ora, o que sucede em muitas ocasiões é que as pessoas, agindo com base em crenças pré-concebidas, muitas vezes erradas, ou nem sequer tendo noção da importância e implicações dos atos que são chamadas a praticar, agem sem procurar aconselhamento jurídico prévio de um advogado. Dou o exemplo simples e frequente da assinatura dos contratos. Contratos de trabalho, de arrendamento ou contratos promessa, infindáveis vezes, são elaborados e assinados sem a intervenção de advogados, o que é um erro e pode gerar problemas muito impactantes na vida das pessoas. Idealmente a intervenção do advogado deveria ser preventiva, para evitar o problema. Vou até mais longe: antes de casar as pessoas deviam procurar aconselhamento jurídico para perceber as implicações patrimoniais do casamento e da escolha do regime de bens na sua vida futura.

Ao longo destes anos frequentou várias pós-graduações no ramo do Direito de Família. Durante o seu percurso profissional, que razões a levaram a seguir esse ramo de direito em específico?

Juridicamente é um ramo do direito que gosto de estudar e pelo qual sempre me interessei. Por outro lado, fui-me destacando nesta área e, também por essa razão, decidi aprofundar os meus conhecimentos. O Direito de Família é uma área muito desafiante porque, para além da parte jurídica, se lida com as emoções das pessoas, como em nenhum outro ramo acontece. Mas eu gosto desse desafio, e sinto que consigo fazer a diferença na vida das pessoas. Mas também gosto dos outros ramos do direito civil, como o direito dos contratos, o direito laboral e outros. Gosto muito do Direito. Neste momento estou a frequentar uma pós-graduação em direito do trabalho.

Durante a sua carreira, quais os principais desafios e questões mais complexas e sensíveis que encontrou na área do Direito de Família? Os processos que envolvem crianças são os mais complexos e desafiantes para si?

O maior desafio, possivelmente, é conseguir equilibrar a defesa da posição do progenitor que nos confiou o processo e a necessidade de não aumentar os níveis de conflito entre os pais. Enquanto na maioria dos processos judiciais as partes em conflito não têm de se relacionar uma com a outra, neste tipo de processos é preciso ter presente que a relação parental existe ao longo de todo o processo e subsistirá após o seu termo. É preciso ter um conhecimento profundo desta área e uma boa técnica processual para se trabalhar com sucesso em processos que envolvem crianças, sem causar mais danos do que aqueles já existem. É mais ou menos o mesmo que tentar desativar uma bomba sem que ela nos rebente nas mãos.

Claudete Teixeira, Advogada

E como é que se pode proteger as crianças quando os pais utilizam os filhos como armas no conflito parental?

Essas situações são muitos graves e são uma forma de maus-tratos. As crianças ficam com danos psicológicos que se poderão refletir no resto da sua vida. A primeira coisa a fazer é munir os pais de conhecimento acerca do que devem, ou não, fazer, no que se refere ao relacionamento com o outro e com os próprios filhos. Quanto mais esclarecidos os pais estiverem, menos erros cometerão. Em situações mais graves, poderá estar em causa a necessidade de um processo de promoção e proteção de menores, ou até pode ser caso para processo-crime. Seria também importante que os pais tivessem apoio psicológico, quando passam por fases de separação ou de conflito parental. Em muitas situações a única forma de proteger as crianças é ajudando os pais. Inúmeras vezes, as crianças têm acompanhamento psicológico para melhor superar a fase da separação dos pais e os conflitos em que estas se veem envolvidas, mas é muito difícil tratar o problema, se não for tratada a sua origem.

Como podem os advogados e os tribunais ser uma ajuda ou resposta para os pais que estão a passar por este tipo de processos?

Se as pessoas estiverem fragilizadas emocionalmente, como muitas vezes estão, poderá ser-lhes difícil agir de uma forma racional e sensata. Por essa razão é muito importante que sejamos empáticos, mas também que as guiemos a tomar as melhores decisões. O acompanhamento do nosso cliente deve ser constante, especialmente nas fases mais críticas, porque as dúvidas e os problemas são frequentes. Em situações de divórcios ou regulação do exercício das responsabilidades parentais, por exemplo, as pessoas são confrontadas com uma realidade que era desconhecida até então e que gera dúvidas acerca de situações concretas do dia a dia que, até essa altura não se colocavam. Se não tiverem respostas atempadas e certeiras os problemas poderão entrar em modo “bola de neve”. É importante também ter noção que os tribunais de família não conseguem ser a solução para tudo e, por essa razão, é preciso também repensar o sistema e perceber como efetivar a ajuda aos pais e às crianças fora dos tribunais. A mediação familiar deve fazer parte da solução, mas neste momento ainda tem pouca expressão prática e tem de se perceber porquê. O apoio mais efetivo e presente que as pessoas têm é o do advogado. Por estas razões é ainda mais importante que o advogado que trabalha nesta área tenha um conhecimento profundo da mesma.

Certamente que ao longo do seu trajeto profissional, existiram transformações na legislação em vigor. Quais as principais mudanças que o Direito de Família sofreu e de que forma estas mudanças tem impactado na prática jurídica?

Eu sublinho as duas últimas grandes alterações legislativas nesta área, que foram as de 2008, quando se eliminou o fator culpa nos processos divórcio e as de 2015, que refletiram uma mudança de paradigma muito importante, nos processos que envolvem crianças. Antes de 2008, nos chamados divórcios litigiosos, o juiz deveria declarar a culpa dos cônjuges no divórcio. O cônjuge declarado culpado sofria consequências patrimoniais negativas, em sede de partilha. Isto levava a que se gerassem processos de divórcio muito litigiosos unicamente para se discutir quem foi o cônjuge culpado pelo divórcio. É fácil perceber que eram processos terríveis onde se gerava uma escalada enorme de conflito. Após as alterações de 2008, essa situação desapareceu, e inclusivamente deixou de se usar a expressão “divórcio litigioso” para se passar a dizer: “divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”. Também em 2008, se abriu o leque de possibilidades para se requerer o divórcio a quaisquer fatos que mostrem a rutura definitiva do casamento, tornando-se mais facilitado o acesso ao divórcio, mesmo sem o consentimento de ambos os cônjuges. Já as alterações de 2015, visaram colocar as crianças e a proteção dos seus direitos e interesses no centro dos processos que a elas dizem respeito. Nesta altura existiram mudanças de linguagem que refletiram ideias muito importantes. A expressão “poder paternal” foi substituída por “responsabilidades parentais”, para se sublinhar a ideia de que os pais não detêm um poder sobre os filhos, mas sim uma responsabilidade. A expressão “menor” foi substituída por “criança”, por se considerar que a expressão menor era redutora e passou a refletir-se cada vez mais a importância da criança dever manter um convívio próximo com ambos os progenitores, em situações de separação dos pais. Processualmente, reforçaram-se os mecanismos de busca de soluções negociadas, tentando-se reduzir os níveis de conflito, nomeadamente estimulando-se o recurso à mediação familiar.

Um dos principais problemas detetados na nossa justiça é a sua morosidade. Como é que os advogados lidam com esta situação? Sobretudo quando falamos de temas particularmente sensíveis, muitas das vezes envolvendo crianças.

A morosidade da justiça é um problema muito grave e não vejo quaisquer perspetivas de melhoria. Tivemos eleições há pouco tempo e francamente não percebo porque é que a questão da justiça, nem mesmo nos programas eleitorais, é abordada de uma forma séria e profunda. Sendo importante frisar que a principal causa da morosidade da justiça é a falta de meios. Meios humanos, técnicos e até de infraestruturas adequadas e suficientes. Não sendo despiciendo fazer notar também como fator relevante a desmotivação e descontentamento dos funcionários judiciais. Também não percebo porque é que quando se aborda o tema da justiça o problema é resumido aos processos-crime. A justiça não se resume aos processos-crime, e menos ainda aos processos de corrupção. Não ouço ninguém falar do caso crónico dos tribunais administrativos ou da gravidade das consequências da morosidade da justiça no caso dos tribunais de família e menores, ou nos tribunais civis, impactando de forma muito negativa o nosso tecido empresarial. Quando estão em causa os direitos das crianças, e os atrasos nos processos prolongam-se por anos, é fácil de perceber a gravidade da situação. O tempo das crianças não é tempo dos adultos. Em cada situação de conflito parental há uma criança em risco. Quando os tribunais de família não conseguem intervir atempadamente, os danos psicológicos provocados nas crianças podem ser graves e irreversíveis. As crianças de hoje serão os adultos do futuro.

Infelizmente, na área da advocacia, as mulheres não têm ainda o mesmo tipo de direitos que a generalidade das mulheres, e mães, têm, havendo uma clara desigualdade. Qual o comentário que esta disparidade lhe merece?

Parece mentira, mas em pleno século XXI as advogadas portuguesas não têm direitos sociais básicos como a proteção na maternidade, assistência à família, proteção na doença, ou outros. Os advogados e solicitadores portugueses são obrigados a descontar para uma caixa de previdência privada, a CPAS, que não nos garante os mesmos direitos sociais disponíveis para os trabalhadores independentes. Contudo, mesmo em países como Espanha e Alemanha, onde, também existem regimes de segurança social privados, são assegurados direitos essenciais como apoio na doença e parentalidade, o que não acontece em Portugal. Todos os governos, mais à esquerda ou mais à direita, gostam de acenar as bandeiras dos direitos sociais, mas não lhes faz qualquer diferença que esses direitos cheguem só a alguns portugueses. Faz agora, em maio, um ano que foi alterada a legislação laboral, com a entrada em vigor da “agenda do trabalho digno”, com a implementação de mais medidas no sentido de promover uma melhor conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar, para os trabalhadores por conta de outrem, e muito bem. Contudo, há um segmento de portugueses e portuguesas relativamente aos quais o Estado mostra total indiferença para o facto de não terem direitos sociais nenhuns no apoio na doença, parentalidade e outros, o que é incompreensível. Não é admissível que as crianças que são filhos de advogadas não tenham direito a ter uma mãe presente nem mesmo quando acabam de nascer. Se para o Estado Português é normal que as advogadas portuguesas tenham de levar o computador portátil para a maternidade, tenham de cumprir prazos enquanto amamentam recém-nascidos de duas em duas horas, de dia e de noite, tenham de fazer julgamentos menos de um mês depois de dar à luz, entre muitas outras situações, não será de considerar que o superior interesse destas crianças está a ser gravemente desconsiderado?

Tendo em conta a exigência da sua área, como consegue encontrar o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal?

Não é fácil. Embora eu consiga em muitas situações desligar-me dos processos quando saio do escritório, tenho de confessar que nem sempre consigo fazê-lo. Muito facilmente a minha cabeça ganha ida própria e mesmo quando estou em momentos de repouso estou a pensar na melhor estratégia para a situação “A” ou “B”. Por outro lado, o nível de responsabilidade que temos na nossa área, e o tipo de trabalho em si, também nos consome muito tempo. Mas nós temos de nos disciplinar para ter tempo para tudo e nunca nos esquecermos de que não há nada mais importante na nossa vida do que os nossos filhos (e eu tenho três) a nossa família, e que a nossa felicidade depende de um equilíbrio e realização a vários níveis. O trabalho não pode passar a ser o que nós somos. O nosso trabalho é a nossa profissão, o que nós somos é outra coisa. E nós temos de ter tempo para ser o que nós somos.