
A questão da expansão das Unidades Locais de Saúde (ULS) em Portugal traz consigo um debate crítico sobre o futuro dos cuidados de saúde primários e os rumos que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) deve trilhar. A decisão de generalizar este modelo, sem o devido planeamento e os recursos adequados, expôs uma vez mais as fragilidades da administração pública e levantou interrogações quanto à sustentabilidade de um sistema de saúde já pressionado por múltiplas necessidades e desafios. A relevância deste tema transcende a mera organização administrativa e toca nas bases fundamentais da prestação de cuidados de saúde, no equilíbrio entre autonomia e centralização e nos impactos que estas escolhas têm na vida dos cidadãos.
A expansão das ULS foi pensada, em teoria, para fortalecer a continuidade dos cuidados e promover uma maior integração entre os hospitais e os serviços de saúde primários. Porém, na prática, a falta de uma estratégia abrangente e cuidadosa parece ter condicionado diretamente a sua implementação potenciando aparentemente a desorganização, a fragmentação e a uma série de consequências que acabaram por prejudicar a eficiência e a qualidade dos cuidados prestados. Esta tentativa apressada de centralizar a gestão dos cuidados de saúde num único Conselho de Administração resultou numa fusão artificial de diferentes culturas organizacionais – tema de estudo muito relevante do ponto de vista gestionário e (quase) sempre esquecido pelos decisores políticos -, sem que houvesse preparação suficiente para lidar com as especificidades de cada uma das áreas. Este cenário sublinha de uma forma muito clara o que há muito já se sabe: a importância de ser efetuado um planeamento meticuloso em qualquer processo de reforma, especialmente quando se trata de um setor tão delicado como a saúde, onde as decisões afetam diretamente a vida das pessoas.
Ao juntar os hospitais e os cuidados de saúde primários sob a mesma administração, o Governo criou uma estrutura que, longe de melhorar a integração, acabou por comprometer a autonomia das Unidades de Saúde Familiar (Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar. (2024). O momento atual dos cuidados de saúde primários em Portugal [14.ª ed.] ). Esta autonomia, que sempre foi um dos pilares do modelo de cuidados primários em Portugal, permitia uma resposta rápida e eficaz às necessidades das populações locais, adequando a gestão e os recursos à realidade de cada território. No entanto, com a expansão das ULS, esta capacidade de adaptação foi sacrificada em prol de uma uniformidade administrativa que não respeitou as especificidades do terreno. Os relatos de profissionais de saúde que se depararam com atrasos nos vencimentos e dificuldades administrativas são testemunhos de um sistema que se revelou incapaz de responder às exigências do dia a dia. Estas falhas administrativas não são meramente burocráticas; elas refletem uma desvalorização das condições laborais dos profissionais e, em última análise, afetam a qualidade do serviço prestado aos utentes.
A criação do Índice de Avaliação e Desempenho (IDE), que introduziu critérios financeiros para a avaliação das USF, é outro ponto que ilustra o impacto negativo das mudanças introduzidas. Ao associar a remuneração dos profissionais ao desempenho financeiro das unidades, o foco passou a ser cada vez mais nos custos (New Public Management) e menos na qualidade dos cuidados. Esta abordagem mercantilista desvirtua a essência dos cuidados de saúde primários, cuja missão deveria ser, antes de tudo, promover a saúde e o bem-estar das pessoas. Esta mudança no paradigma de avaliação das USF não só está a contribuir para gerar conflitos internos, como também parece afastar os cuidados primários do seu verdadeiro propósito, submetendo-os a lógicas economicistas que frequentemente ignoram a complexidade do trabalho em saúde.
Por outro lado, a falta de instrumentos claros de articulação entre os diferentes níveis de cuidados, como o manual de articulação que nunca chegou a ser implementado, agravou ainda mais as dificuldades na operacionalização do modelo. A ausência de diretrizes explícitas sobre a forma como os hospitais e os cuidados primários deveriam colaborar reforçou o isolamento dos centros de saúde, que se viram privados de uma estrutura de apoio robusta. Esta falta de coordenação é especialmente problemática num contexto em que a continuidade dos cuidados se torna cada vez mais crucial para enfrentar os desafios demográficos e epidemiológicos que Portugal enfrenta, como o envelhecimento da população e o aumento das doenças crónicas. Sem uma verdadeira integração entre os diferentes serviços de saúde, o SNS corre o risco de fragmentar ainda mais a sua resposta e de perpetuar ineficiências que comprometem a sua sustentabilidade.
Enquanto profissional de saúde e político local sempre fui contra os processos de concentração dos serviços da administração pública, em geral, e na saúde, em particular. A centralização tende a criar estruturas demasiado pesadas e distantes das realidades locais, dificultando a capacidade de adaptação e a resposta às necessidades específicas de cada comunidade. Defendo, de forma inequívoca, que a solução para os problemas do SNS passa por um processo de descentralização, seja regional ou local, que atribua maiores competências às autarquias. Contudo, essa descentralização não deve ser meramente administrativa, uma ´meia-reforma`, apenas com a delegação de tarefas operacionais, mas também legislativa (bem delimitada) e política, dotando as autoridades locais do poder de decisão necessário para implementar políticas de saúde que sejam ajustadas às características e exigências dos seus territórios.
A expansão apressada das ULS levanta, assim, uma questão essencial sobre o papel do Estado na gestão da saúde: como encontrar o equilíbrio entre a centralização e a descentralização de competências? É evidente que a centralização excessiva de decisões e recursos parece limitar a capacidade de resposta dos serviços de saúde, especialmente quando as necessidades locais são tão complexas, variadas e dinâmicas. Por outro lado, uma descentralização sem critérios bem definidos e sem os instrumentos adequados de coordenação tenderá a levar a disparidades na qualidade dos cuidados prestados e na distribuição de recursos.
O debate sobre as ULS é, portanto, muito mais do que uma discussão técnica sobre modelos de gestão em saúde. Trata-se de uma reflexão sobre os valores que devem nortear o SNS e sobre o tipo de sociedade que queremos construir. A saúde pública, em última análise, é um reflexo das escolhas políticas e das prioridades que orientam a governação. Quando se opta por soluções políticas apressadas e mal planeadas, sacrifica-se a qualidade dos serviços e a confiança dos cidadãos. No entanto, os erros cometidos não precisam de ser definitivos. Se as lições forem devidamente aprendidas e as reformas forem conduzidas com prudência e rigor é possível corrigir o rumo e fortalecer um sistema de saúde que é um dos maiores patrimónios do país.
A importância deste tema reside, então, na necessidade de garantir que o SNS continue a ser um serviço público de excelência, onde a qualidade dos cuidados e a dignidade dos profissionais sejam sempre prioritárias. A reforma dos cuidados de saúde primários deve ser orientada por princípios sólidos, onde o respeito pelas particularidades de cada território, a valorização do trabalho dos profissionais e a proximidade com os cidadãos sejam as linhas mestras de um novo paradigma. A história recente das ULS não deve ser esquecida, mas antes servir de guia para futuras políticas, evitando que os erros se repitam e assegurando que o SNS se mantenha como um pilar fundamental do Estado social em Portugal. Uma descentralização bem feita pode ser a chave para alcançar uma governance mais eficaz, que promova a coesão territorial e a sustentabilidade do sistema de saúde, respeitando sempre a especificidade das diferentes regiões do país.
Sérgio Serra
Presidente da MAG da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros
