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A interrupção das negociações entre a Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) e o Ministério da Saúde não deve ser meramente interpretada como um incidente isolado de desrespeito institucional. Este episódio é, na verdade, a epítome de uma crise sistémica que revela as profundas fissuras subjacentes no tecido do Sistema de Saúde Português (SSP). A tensão latente que se manifesta neste impasse transcende a esfera das relações laborais e estende-se aos domínios mais fundamentais da valorização profissional, dos direitos democráticos e da sustentabilidade da saúde pública em Portugal.

Numa sociedade que se preze democrática e desenvolvida, a saúde é um direito inalienável e universal, um pilar basilar do contrato social. Neste cenário, os Enfermeiros não são meros agentes operacionais, mas sim os guardiões da saúde pública, desempenhando um papel essencial e insubstituível na prestação de cuidados clínicos diferenciados. No entanto, a interrupção abrupta e unilateral das negociações por parte do Ministério da Saúde levanta interrogações inquietantes sobre o reconhecimento e a valorização destes profissionais.

A contínua ausência de propostas formais e a recusa sistemática em dialogar com a ASPE espelham uma falha grave no modelo de gestão e comunicação do Ministério, uma postura que pode ser caracterizada como de bloqueio, inércia e desconsideração pela classe profissional mais numerosa do setor.

A questão dos direitos laborais, entre os quais se destaca o direito à greve, constitui um dos alicerces de qualquer sociedade verdadeiramente democrática. A greve é, frequentemente, o último recurso dos trabalhadores para expressarem o seu descontentamento face a realidades laborais insustentáveis, reivindicando condições de trabalho mais justas e dignas. Contudo, a decisão do Ministério da Saúde de não negociar com sindicatos que emitiram pré-avisos de greve subverte os princípios fundamentais da democracia, desvirtuando o próprio conceito de diálogo social que deveria ser o fundamento das relações laborais equilibradas e justas.

A postura autocrática do atual Ministério da Saúde ao longo de todo este processo negocial evidencia um profundo desrespeito pelos profissionais de enfermagem. A ausência continuada da Ministra da Saúde, Ana Paula Martins, ao longo de todo o processo negocial, é mais do que uma ausência física; é uma ausência simbólica que denota uma negligência institucional alarmante. Este comportamento mina a moral e a motivação dos Enfermeiros e sugere uma subestimação do seu papel crucial dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS), enviando uma mensagem preocupante sobre as prioridades dos responsáveis governamentais.

A sustentabilidade do SNS está intimamente ligada à satisfação e motivação dos seus profissionais. Não é preciso recorrer a vasta literatura científica para compreendermos que Enfermeiros desvalorizados e desrespeitados comprometem a qualidade dos cuidados prestados, afetando a eficiência e eficácia do sistema de saúde.

A recente falta de diálogo e o corte unilateral no processo negocial pelo Ministério da Saúde apenas contribuem para exacerbar um ambiente de trabalho tóxico, aumentando o risco de burnout e desmotivação entre os profissionais. Consequentemente, iremos continuar a assistir a fenómenos emigratórios de capital humano muito diferenciado, à elevada rotatividade nas instituições de saúde e à dificuldade em reter talentos e competências diferenciadas, uma realidade bem conhecida pelos peritos em gestão de saúde, mas insistentemente ignorada pelos sucessivos responsáveis governamentais.

Este impasse não deve ser visto apenas como um problema setorial, mas como um reflexo da forma como o Governo atual gere e valoriza o seu capital humano, particularmente em relação a grupos profissionais cruciais como são os Enfermeiros. A interrupção unilateral das negociações sublinha a necessidade urgente de uma revisão profunda das práticas de gestão e comunicação do Ministério. É fundamental que o Governo reconheça a importância de manter um diálogo aberto e construtivo com os sindicatos, encarando-os como parceiros essenciais na construção de um sistema de saúde robusto e resiliente. No entanto, a experiência recente não permite nutrir grandes expectativas de que tal mudança ocorra.

A valorização dos Enfermeiros portugueses através de condições de trabalho justas e um reconhecimento profissional adequado deve ser uma prioridade inegociável. Durante demasiados anos, os profissionais de enfermagem têm esperado por uma atenção e consideração diferenciadas por parte das entidades governamentais. Face a este cenário, torna-se imperativo um apelo sério aos enfermeiros para que se unam na luta democrática e nas greves já agendadas para setembro.

A greve, como expressão legítima de descontentamento e reivindicação de direitos é uma ferramenta poderosa e necessária para garantir que as vozes dos Enfermeiros sejam ouvidas e respeitadas. Sem uma luta consistente e determinada, será muito difícil alcançar as mudanças necessárias para uma valorização justa e adequada destes profissionais.

A situação atual não só ilustra a crise de reconhecimento e valorização dos Enfermeiros em Portugal como também sublinha a falência do modelo de gestão governamental em valorizar e dialogar com os seus profissionais de saúde. Razão pela qual a greve dos Enfermeiros emerge como uma resposta legítima e necessária a uma gestão insensível e desatenta às necessidades dos seus trabalhadores e como um passo essencial na luta por um sistema de saúde mais justo, eficiente e equitativo.

Que esta mobilização sirva de catalisador para a transformação necessária e urgente do SNS!

Sérgio Serra

Presidente da MAG da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros

www.aspe.pt