A discussão sobre a valorização dos profissionais de saúde no contexto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) assume uma relevância inquestionável num momento em que o sector enfrenta desafios de uma complexidade sem precedentes. A Base 29 da Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro), ao elencar os direitos destes profissionais, coloca em evidência a urgente necessidade de serem desenhadas políticas públicas que reconheçam, protejam e promovam efetivamente aqueles que são o coração pulsante do sistema de saúde português.
A Base 29 tem início com um princípio que me parece ser muito claro: todos os profissionais de saúde que trabalham no SNS têm o direito a uma carreira que reconheça a sua diferenciação na área da saúde. Esta enunciação simples esconde, no entanto, uma complexidade significativa.
É que a diferenciação a que se refere não indicia apenas uma questão técnica. Ela reforça a ideia de se valorizar a capacidade de cada profissional para aliar conhecimento científico e prática clínica com uma sensibilidade humana que é crucial no cuidado dos cidadãos que precisam de cuidados de saúde. Este reconhecimento de uma carreira é, portanto, mais do que um simples direito. É uma necessidade estrutural que permite atrair e reter os melhores talentos no serviço público, garantindo que o SNS continue a ser um exemplo de excelência em saúde.
E esta preocupação não pode ser aplicada apenas aos médicos!
Um dos aspetos da Base 29 que considero ser mais crítico é a exigência de garantir a estabilidade do vínculo laboral dos profissionais de saúde. Como é bem conhecido, a instabilidade e a precariedade laboral são fenómenos que têm minado não apenas a moral dos enfermeiros, mas também a qualidade dos cuidados que estes podem oferecer.
Não é novidade que a precariedade, em particular, é uma ameaça insidiosa que compromete a continuidade e a segurança dos cuidados prestados. O combate à precariedade, para além de ser uma questão de justiça social, é também uma estratégia vital que permite assegurar que os Enfermeiros se podem dedicar plenamente às suas funções, sem a constante sombra da incerteza sobre o seu futuro.
Na atualidade, o avanço das ciências da saúde e o aumento da complexidade das condições clínicas exigem uma abordagem multidisciplinar, que só pode ser alcançada através da colaboração estreita entre diferentes profissões e diferentes áreas de especialização. Sobre este ponto, a Base 29 sublinha a importância do trabalho em equipa e da complementaridade entre os diversos profissionais de saúde, elementos que são cruciais para a resposta integrada e eficaz às necessidades dos utentes.
O trabalho em equipa não é apenas uma boa prática. É uma exigência operacional que garante a máxima eficiência e qualidade nos cuidados prestados. Neste âmbito, compete ao Governo a responsabilidade de criar um ambiente favorável que permita fomentar a colaboração e a partilha de conhecimentos, elementos essenciais para uma prática de saúde verdadeiramente integrada.
Porém, o que continuamos a perceber é que o foco das políticas continua centrado na produção de atos médicos, desconsiderando todos os outros profissionais apenas como meros contribuintes cooperantes para os resultados desses atos!
No atual cenário, em que os avanços científicos e tecnológicos ocorrem a um ritmo acelerado, a formação contínua dos Enfermeiros não pode ser vista como um luxo ao livre arbitre-o de cada um, mas como uma necessidade efetiva. A Base 29 enfatiza a importância de garantir que todos os profissionais do SNS tenham acesso a uma formação contínua e permanente, assegurando que estejam sempre na vanguarda do conhecimento e preparados para aplicar as melhores práticas.
Este investimento em formação não é apenas uma forma de valorização profissional. É uma medida crucial para garantir a qualidade e a segurança dos cuidados prestados, reforçando a capacidade do SNS para responder aos desafios de um mundo em constante mudança.
Não se compreende, portanto, porque continuam os Enfermeiros a ter que custear a sua formação especializada ao nível de Mestrado para o SNS utilizar sem qualquer remuneração ou com um salário quase igual aos licenciados. A desvalorização de uma profissão elevada ao seu expoente máximo!
Por fim, a Base 29 aborda a questão da dedicação plena dos profissionais de saúde como um regime de trabalho que deve ser valorizado e incentivado. Esta dedicação não se refere apenas à exclusividade de serviço no setor público, mas também a um compromisso integral com os valores e a missão do SNS.
A criação de incentivos que permitam promover este regime é absolutamente fundamental para atrair e reter os profissionais mais qualificados e dedicados, garantindo desta forma que o SNS continue a ser um serviço de saúde universal, equitativo e de qualidade. A dedicação plena representa, assim, um compromisso ético e prático que assegura a continuidade e a excelência do serviço público de saúde. Uma implementação que deve ser acompanhada por um diálogo constante e construtivo entre o Governo e os profissionais de saúde.
Mas também aqui a aplicação é só para médicos, deixando todos os outros profissionais excluídos!
As promessas de estabilidade e valorização profissional só serão credíveis se acompanhadas por ações concretas que demonstrem um verdadeiro compromisso com o bem-estar dos trabalhadores do SNS. A confiança dos profissionais nas intenções do Governo é fundamental para o sucesso desta nova abordagem.
Reforço a ideia de que a valorização de todos os profissionais de saúde, conforme estruturada na Base 29 da Lei de Bases da Saúde, não é apenas uma questão de direitos laborais. É um desígnio nacional que visa garantir a sustentabilidade e a excelência do SNS.
Esta valorização, que se expressa na criação de condições de trabalho estáveis, dignas e estimulantes, é essencial para assegurar que o SNS possa continuar a oferecer cuidados de saúde de elevada qualidade a todos os cidadãos.
Em última análise, a valorização dos Enfermeiros no SNS não é apenas uma questão de justiça laboral, mas um imperativo ético e social. Num mundo em constante mudança, onde as crises sanitárias podem surgir a qualquer momento, a solidez e resiliência do nosso sistema de saúde dependem, em grande medida, do compromisso e da dedicação dos seus profissionais. É responsabilidade coletiva garantir que estes “protagonistas silenciosos” encontrem no SNS não apenas um local de trabalho, mas um verdadeiro “porto seguro” onde possam realizar plenamente a sua vocação de cuidar.
Sérgio Serra, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ASPE