Ao abrirmos esta edição com um tema que nos remete para a casa, sinónimo de segurança, refúgio e conforto, sou imediatamente invadido pelas imagens iniciais da sua construção. Alicerces, vigas, paredes, tijolo por tijolo… e aqui já é inevitável começar a ouvir aqueles primeiros acordes da Construção mais genial de que há memória. A obra-prima de Chico Buarque, considerada a melhor música brasileira de sempre pela Rolling Stone.
“Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima”
É um dia de um trabalhador na construção civil, com versos cadenciados, propositadamente repetitivos, criando a sensação pendular do quotidiano. As palavras com que os versos deste poema sublime terminam, todas elas proparoxítonas (ou esdrúxulas), vão sendo trocadas ao longo da composição. É nessa troca precisa destes adjetivos e substantivos que reside grande parte do efeito provocado por esta música. A letra é absolutamente cristalina, completamente reveladora, enquanto a melodia como que nos hipnotiza.
“Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego”
A disforia vai crescendo com a melodia, porque a denúncia faz-se mais de realidade do que de sonho.
Da personagem desta canção, capaz de comer “feijão com arroz como se fosse um príncipe”, como “se fosse o máximo”, ficamos a saber tanto, o suficiente para que qualquer trabalhador no mundo se consiga identificar com ele. Ainda que desumanizado pelo excesso de trabalho, ele consegue amar e beijar, dançar e rir, mas acaba bêbado, tragicamente cai da construção e morre “na contramão atrapalhando o tráfego”.
O final comovente de alguém que, apesar de tudo, conseguia flutuar, livre, “como se fosse um pássaro”, como se “fosse sábado”.