: 21 de Novembro, 2025 Redação:: Comentários: 0

Em 2024, mais de 30 mil mulheres em Portugal denunciaram violência doméstica e 22 foram assassinadas. Mais de 11 mil foram acompanhadas pela APAV. Apenas 13% dos casos resultaram em condenações. Os números crescem, as histórias repetem-se, geração após geração, com os mais jovens mais vulneráveis, e com muitos outros casos que não fazem parte destas estatísticas porque não apresentaram queixa. O lar, que deveria ser um espaço de segurança, continua a ser um lugar de risco.

O problema é também um sintoma do tempo político que vivemos.

A ciência mostra que a forma como uma sociedade trata as mulheres é o barómetro da sua democracia. Onde cresce o autoritarismo, aumentam o controlo, o medo e a desigualdade. Não é coincidência que os movimentos de extrema-direita façam da luta contra a “ideologia de género” um dos seus eixos centrais. A retórica que promete proteger as “verdadeiras mulheres portuguesas” é a mesma que tenta silenciar vozes femininas, relativizar a violência doméstica e transformar a igualdade num exagero. É a política do “voltar ao lugar”, disfarçada de tradição.

O ataque aos direitos das mulheres e o avanço do autoritarismo caminham juntos como estratégia política. Portugal é apenas um caso nacional na família europeia. O Parlamento português tem sido palco de intervenções agressivas e linguagem misógina que normalizam o desrespeito.

Quando o espaço político legitima o insulto, a ironia sexista ou a ideia de que há “mulheres de bem” e outras que não o são, abre-se caminho a um clima social onde as microagressões se tornam rotina. E quando a humilhação se banaliza a violência deixa de ser exceção.

Cada vez que uma mulher é interrompida, ridicularizada com um sorriso irónico, ou mandada calar, dá-se um “ensaio de domínio”, um gesto de poder que a quer submissa. Estas pequenas agressões, validadas pelo discurso político dominante, perdem o estatuto de violência e passam a ser “humor” ou “liberdade de expressão”. Assim, passo a passo, palavra a palavra, a democracia vai-se corroendo por dentro.

São comportamentos, comentários ou atitudes subtis que comunicam desvalorização, inferiorização ou hostilidade e que, progressivamente, e não inofensivamente, criam um clima social de legitimação da desigualdade.

Normaliza-se o sexismo e a agressividade, reforçando-se a ideia de que muitas queixas são exagero. Atacam-se as instituições e os profissionais que trabalham na área, e fragiliza-se a rede de proteção, enviando-se a mensagem de que o problema é “inventado” ou “ideológico”. Reforçam-se os papéis de género “boa mãe”, “boa esposa”, “mulheres de bem”, as que merecem proteção, enquanto as outras já podem ser alvo de violência. Estas são normalmente estratégias político-morais, típicas de projetos autoritários.

Quando o tecido cultural fica saturado destas microagressões, a tolerância social à violência aumenta. Se os comentários misóginos passam sem reprovação, é mais provável que se relativize o “controlo”, ou o abuso verbal ou físico numa relação, e o contexto de trabalho ou a privacidade calada do lar passam a ser espaços de risco.

Hoje, uma em cada três mulheres europeias já sofreu violência física ou sexual. Por trás de cada número está uma vida.

O Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres não é uma data simbólica: é um teste à coragem coletiva. Proteger as mulheres é proteger a democracia. E nenhuma sociedade será livre enquanto metade das suas pessoas viver com medo.

Sofia Ramalho, Bastonária da Ordem dos Psicólogos Portugueses