A Mais Magazine teve o prazer de conversar com o provedor Altamiro Claro, que falou sobre a história e evolução da Santa Casa da Misericórdia de Valpaços, o papel central do hospital na região, os desafios sociais e educativos atuais e os projetos que a instituição tem em curso para continuar a servir a comunidade com qualidade e inovação.
Poderia começar por nos fazer um breve enquadramento histórico da Santa Casa da Misericórdia de Valpaços (SCMV)? Como surgiu a instituição?
A Santa Casa da Misericórdia de Valpaços é uma instituição com raízes profundas na história e na vida comunitária do concelho. À semelhança de outras Misericórdias fundadas em Portugal, nasceu da vontade de servir os mais necessitados, inspirada nos valores da solidariedade cristã e na prática das catorze obras de misericórdia.
A sua origem remonta à longa tradição assistencial existente em Valpaços desde o século XIX. Em 1875, a Arquiconfraria do Santíssimo e Imaculado Coração de Jesus iniciou esforços para construir um hospital, contando com o apoio de vários beneméritos locais, entre os quais Rosa Maria da Cunha, que em 1877 deixou em testamento o primeiro legado para esta causa. Seguiram-se outras doações, como as de Ana Félix Lopes (1884) e João Baptista Lopes (1897), que consolidaram o projeto.

Formalmente, a Misericórdia de Valpaços foi criada em 1946, com estatutos aprovados em 1947, assumindo desde então a continuidade desta tradição. Apesar de ser relativamente jovem face a congéneres centenárias, afirmou-se rapidamente pelo seu papel assistencial junto dos mais pobres, desprotegidos e idosos, tendo o hospital como pilar central da sua ação.
Hoje, mantém-se fiel à sua missão de cuidar dos mais frágeis, promovendo a dignidade humana e contribuindo de forma ativa para o desenvolvimento local, numa relação de proximidade com a comunidade.
Assumiu funções como Provedor em 2012. Nessa altura, em que estado encontrou a SCMV e quais foram as primeiras metas que definiu?
Quando assumi funções em 2012, a Misericórdia de Valpaços atravessava um período de grandes convulsões na sequência do encerramento do hospital, até então gerido por uma empresa espanhola, que para tal constituiu a “LUSIPAÇOS”. Este período ficou marcado por fortes tensões locais, levando a população a realizar manifestações contra o encerramento do hospital. A resolução do conflito existente com a massa insolvente e com os trabalhadores que ficaram sem emprego tornou-se desde logo o objetivo prioritário da minha gestão, tendo em vista encontrar a paz social, indispensável à reorganização da Santa Casa.
Assim, as primeiras metas que defini passaram por quatro eixos fundamentais: implementar uma estratégia de resolução dos conflitos laborais e contratuais, estabilizar a gestão financeira, valorizar os recursos humanos e reforçar a qualidade das respostas sociais e de saúde. Acreditava, e continuo a acreditar, que só com uma base sólida de sustentabilidade e com equipas motivadas seria possível projetar a instituição para o futuro e alargar o impacto positivo junto da comunidade.
Com determinação foi possível encerrar todos os conflitos existentes e dar início a uma nova fase que passou pela renovação total e ampliação do Hospital, criando as condições indispensáveis à prossecução da principal missão – servir as populações da região com um Hospital moderno, próximo e completo.
O hospital é hoje o equipamento mais emblemático da SCMV e uma referência a nível regional e nacional. Quais são atualmente as suas principais valências?
O hospital da Misericórdia de Valpaços é, sem dúvida, uma das marcas mais distintivas da nossa ação e um orgulho para toda a comunidade. Até ao 25 de abril de 1974 era a única resposta ao nível da saúde na área do concelho.

Em 10 de dezembro de 2016, conheceu uma nova fase, com a assinatura de um Protocolo de Cooperação entre a SCMV, a Administração Regional de Saúde do Norte (ARSN) e o Município de Valpaços, cujo objetivo fundamental passava pela Recuperação e Ampliação do Hospital, e consequente atribuição de acordos de cooperação com o SNS, através da ARSN.
Assim renasce o Hospital da Misericórdia de Valpaços, completamente renovado e dotado dos melhores e mais modernos equipamentos, tendo em vista dar respostas de qualidade, num território tão carente de assistência na saúde. Foi uma tarefa ciclópica, em que poucos acreditavam, mas que, com determinação, empenho e persistência, se tornou num exemplo de sucesso ao serviço das populações da região e emblemático porque representou uma parceria local, entre a SCMV e o Município de Valpaços, de luta contra a desertificação do concelho, ao atrair profissionais qualificados que se encontravam dispersos pelo país e no estrangeiro, e que aqui vieram reiniciar os seus projetos de vida.
Atualmente dispõe de várias valências fundamentais: – Centro Cirúrgico “Dr. Olímpio Seca”; Unidade de Internamento moderna; Área de Consultas Externas com mais de 20 especialidades médicas; Unidade de Medicina Física e reabilitação, que atende, em média, 100 utentes/dia; Serviço de Imagiologia dotado dos mais modernos equipamentos e de técnicos qualificados; Serviço de Atendimento Permanente e Unidade de Cuidados Continuados de Média Duração Reabilitação.

O setor social assume um papel fundamental de complementaridade à prestação de cuidados de saúde realizados pelo SNS. De que forma é que o vosso Hospital está a colaborar com o SNS?
O nosso Hospital tem vindo a reforçar a colaboração com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) através do programa “Consulta a Tempo e Horas (CTH)”. Atualmente, no âmbito deste programa, disponibilizamos sete especialidades hospitalares, abrangendo consultas e cirurgias.
Esta cooperação tem sido essencial para responder a uma procura crescente, não apenas do nosso concelho, mas também em toda a região de Trás-Os-Montes e Alto Douro. Um exemplo recente é o aumento da procura por parte da população do ACES Douro Sul (inclui concelhos de Viseu e Guarda), o que reforça a relevância do nosso serviço.
Com esta parceria estamos a melhorar o acesso e a promover maior equidade nos cuidados de saúde hospitalares, ajudando a reduzir listas de espera e a otimizar os recursos disponíveis no sistema público e no setor social. Todo este processo de encaminhamento dos doentes tem início nos médicos de família.

Na era em que vivemos, marcada pela tecnologia, considera que o hospital está hoje devidamente equipado para responder de forma eficaz às necessidades dos utentes?
Vivemos numa era em que a tecnologia desempenha um papel central na saúde, seja no diagnóstico, no tratamento ou na gestão dos cuidados. O Hospital da Misericórdia de Valpaços tem acompanhado esta evolução, investindo de forma contínua na modernização dos seus equipamentos e na digitalização de processos.
Hoje, o hospital está dotado de meios tecnológicos que permitem responder de forma eficaz e segura às necessidades dos utentes, garantindo qualidade clínica, rapidez no diagnóstico e maior conforto na prestação dos cuidados. Entre os investimentos mais recentes destaca-se a aquisição de uma torre cirúrgica 3D para a especialidade de Urologia (Cirurgia Laparoscópica) e de uma TAC com recurso a inteligência artificial para o serviço de imagiologia.
Paralelamente, temos vindo a apostar em sistemas digitais de gestão clínica e administrativa, que permitem maior integração da informação, mais eficiência nos processos e melhor acompanhamento dos doentes. O nosso objetivo é claro: conjugar a inovação tecnológica com a humanização dos cuidados.
A SCMV gere também 10 estruturas residenciais para idosos. Que características destaca nestes equipamentos e qual a sua relevância para a comunidade local?
O Setor Social representa, hoje, o principal foco de atuação da Santa Casa da Misericórdia de Valpaços. Colocamos ao serviço das populações da região 10 Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas, complementadas por 4 Centros de Dia e 4 Serviços de Apoio Domiciliário, garantindo assim uma resposta atempada, abrangente e de proximidade.
Estes equipamentos distinguem-se por oferecerem condições de conforto, segurança e acompanhamento permanente, assegurado por equipas multidisciplinares que integram profissionais de saúde, cuidadores e técnicos especializados. Para além dos cuidados básicos, promovemos atividades socioculturais e de estimulação, que contribuem para o bem-estar físico, emocional e social dos residentes.
A sua relevância é ainda maior no contexto do interior norte, marcado pelo envelhecimento populacional e consequente aumento de situações de demência e dependência física, às quais os nossos serviços têm que dar uma resposta efetiva, pela incapacidade do estado em implementar uma rede nacional para as demências, que responda ao drama das famílias.

A instituição dispõe ainda de Creche e Jardim de Infância, com diversas atividades pedagógicas. Qual é, no seu entender, a importância destas respostas sociais para o desenvolvimento educativo das crianças?
A Creche e o Jardim de Infância representam uma área essencial da nossa intervenção. Atualmente, acolhemos 86 crianças em Creche e 74 em Ensino Pré-Escolar, assegurando não apenas o cuidado diário, mas também uma resposta pedagógica estruturada e de qualidade, bem patente na procura que, em cada ano, supera largamente a capacidade instalada.
Estas respostas têm uma importância decisiva para o desenvolvimento integral das crianças, promovendo desde cedo valores como a autonomia, a socialização e a criatividade. Apostamos em projetos educativos anuais que estimulam o contacto com a comunidade, a cultura, a natureza e as tradições locais, porque acreditamos que uma criança integrada no seu meio cresce mais segura e confiante.
A SCMV investe igualmente no setor agrícola, através da Quinta Nossa Senhora do Carmo, com a produção de vinho e azeite. Que papel assume este projeto no seio da instituição?
A Quinta Nossa Senhora do Carmo é um projeto que traduz bem a forma como a Misericórdia de Valpaços alia tradição, sustentabilidade e inovação. A Quinta está localizada em Valverde e conta ainda com outros terrenos em Fornos do Pinhal, num total de 6 hectares dedicados essencialmente à produção de vinhos e algum azeite, que refletem a identidade e a qualidade desta sub-região de Trás-os-Montes.
A nossa principal referência são os vinhos com a marca “Valpaço-lo-Velho”, que, ao longo dos últimos anos, têm sido distinguidos em vários concursos. Este projeto tem essencialmente uma dimensão social e comunitária. Um exemplo disso é o facto de ano a ano, os nossos utentes, crianças e colaboradores participarem ativamente na vindima, um momento de convívio intergeracional e de valorização das tradições populares.
Em termos numéricos, quantos utentes são atualmente abrangidos pela SCMV?
A Santa Casa da Misericórdia de Valpaços acompanha hoje de forma direta mais de 880 utentes nas suas diferentes respostas sociais. Em concreto, contamos com cerca de 570 idosos integrados nas Estruturas Residenciais para Idosos e no Serviço de Apoio Domiciliário, apoiamos 30 pessoas através da Cantina Social, acolhemos diariamente 86 crianças em Creche e 75 em Jardim de Infância e acompanhamos ainda 22 utentes na Unidade de Cuidados Continuados, que se mantém com taxa de ocupação próxima dos 100%.
A esta intervenção social soma-se a dimensão clínica do hospital, que em 2024 realizou mais de 11 mil consultas de especialidade, 7000 análises clínicas, 1016 cirurgias, cerca de 17 mil exames de imagiologia e de 7000 pessoas assistidas no serviço de atendimento urgente.
E quanto aos colaboradores, quantos integram a instituição neste momento e que princípios considera fundamentais no desempenho das suas funções?
A Misericórdia de Valpaços conta atualmente com 362 colaboradores, distribuídos pelas diferentes áreas de intervenção da instituição: saúde, apoio social, educação e serviços de suporte.
Mais do que o número, importa sublinhar os princípios que norteiam o seu trabalho: profissionalismo, dedicação, humanização e espírito de missão. São estes valores que fazem a diferença no dia a dia e que permitem à instituição prestar cuidados de qualidade, próximos das pessoas e atentos às necessidades reais da comunidade.
Nos últimos anos, a instituição teve um crescimento significativo em termos das suas receitas que hoje atingem valores próximos de 14 milhões de euros (anuais), o que dá a esta Instituição uma dimensão empresarial, que significa a principal âncora de emprego na região, determinante no processo de povoamento do território.

Para terminar, que perspetivas existem para o futuro da SCMV? Que projetos tem em execução ou gostaria ainda de ver concretizados?
O futuro passa por continuar a inovar e a reforçar a sua missão social, respondendo aos desafios de um território marcado pelo envelhecimento populacional e pela necessidade de serviços de proximidade, tendo sempre como referência uma gestão participativa, com sentido empresarial e essencialmente tendo como fim último ajudar as pessoas mais carenciadas e isoladas da sociedade.

Entre os projetos em execução, destaco a construção do Complexo Residencial do Pinheiro Manso – Habitação Colaborativa (PRR), um equipamento social de nova geração, destinado a pessoas “que ainda são novas para ingressar em lar, mas já não se sentem bem sozinhas em casa”, a inaugurar no início de 2026.É um modelo pioneiro em Portugal, já existente noutros países, e que se encontra em fase de conclusão, dirigido a 47 residentes, com um investimento total que ultrapassa os 2 milhões de euros.
Gostaria ainda de poder lançar as obras de ampliação das alas norte (segundo bloco operatório e alargamento do internamento) e sul do hospital que já se encontram dotadas de projeto de execução, mas o momento não é o mais indicado atendendo à falta de capacidade das empresas de construção, o que torna os valores construtivos muito elevados. Assim, estamos a aguardar por melhores condições do mercado de construção para lançar estes concursos.
Mas o futuro constrói-se também com memória: nunca esquecemos os primeiros beneméritos que, já em 1877, acreditaram nesta obra. É nessa herança de solidariedade que continuamos a encontrar a força para inovar e servir melhor a comunidade de Valpaços.

