: 26 de Setembro, 2025 Redação:: Comentários: 0

Vivemos numa sociedade que valoriza o avanço tecnológico e alimenta a promessa de prolongar indefinidamente a juventude. A medicina moderna alcançou feitos admiráveis, permitindo diagnósticos precoces, terapias inovadoras e cirurgias de elevada complexidade. Contudo, por mais extraordinários que sejam estes progressos, chega sempre um momento em que curar já não é possível. Nesses instantes, a verdadeira vocação médica revela-se: cuidar. E é nesse limiar, onde a cura deixa de ser viável, mas a dignidade da vida permanece intacta, que os cuidados paliativos assumem a sua importância plena, colocando a pessoa no centro e reconhecendo que cuidar é, e deve ser sempre, muito mais do que curar.

Ao contrário do paradigma tradicional, centrado na luta pela cura a todo o custo, os cuidados paliativos não medem o sucesso pelo número de dias acrescentados ao calendário, mas pela qualidade desses dias, pela serenidade, pelo conforto e pelo respeito pela vontade e valores da pessoa. Mais do que tratar sintomas físicos, esta prática integra, de forma inseparável, o apoio emocional, social e espiritual, sustentando o ser humano em toda a sua complexidade. Num momento de fragilidade, escutar, olhar, tocar são gestos tão essenciais quanto aliviar a dor ou controlar outros sintomas físicos. Como bem sintetiza a expressão tantas vezes repetida por quem trabalha nesta área, “é fundamental escutar, olhar, tocar e falar”, uma comunicação atenta e empática, aliada a um trabalho verdadeiramente interdisciplinar, constitui o coração dos cuidados paliativos.

Embora frequentemente associados ao fim de vida, os cuidados paliativos devem começar muito antes, sempre que uma doença ameaça a vida e provoca sofrimento físico ou emocional significativo. A sua introdução precoce contribui para esclarecer decisões, apoiar a tomada de decisão e planear o futuro, evitando intervenções desnecessárias e dolorosas que já não trazem benefício real e garante que cada escolha terapêutica respeita a dignidade e os desejos da pessoa. É um ato de coragem e lucidez aceitar que, apesar de todos os esforços, a vida deve ser vivida com conforto, sentido e presença.

Em Portugal, a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos (Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro) consagra o direito dos cidadãos a este tipo de cuidados e define a tipologia e organização das equipas que o país deve dispor. Porém, com o desaparecimento das Administrações Regionais de Saúde (ARS) e a generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS), a lei encontra-se desatualizada. Esta lacuna agrava-se com a ausência, desde o final de 2024, da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, organismo que tinha como missão orientar, coordenar e avaliar o desenvolvimento da rede.

Os números revelam de forma clara a gravidade da situação. Estamos abaixo da recomendação europeia de 80 a 100 camas por milhão de habitantes. Existem atualmente cerca de 450 camas para uma necessidade estimada em 900. Não surpreende, por isso, que 48% das pessoas referenciadas não consigam aceder a uma vaga e que apenas 20 a 30% dos doentes elegíveis tenham acesso a uma equipa de cuidados paliativos. O cenário é ainda mais dramático na pediatria: mais de 90% das crianças que necessitam destes cuidados ficam sem resposta especializada.

No entanto, este défice de camas, sendo grave, não é o maior problema. O principal entrave está na escassez e fragilidade das equipas. Mais do que camas ou equipamentos, os cuidados paliativos são feitos por pessoas, médicos e outros profissionais, em equipas especializadas que vão ao encontro dos doentes onde eles estão: em casa, em lares (ERPI), nos hospitais ou nas unidades da Rede Nacional de Cuidados Paliativos. Sem médicos diferenciados e profissionais qualificados, não há resposta.

O Colégio de Medicina Paliativa da Ordem dos Médicos expressou a sua preocupação considerando esta situação inaceitável e denunciando a desigualdade de acesso no território. Existem estimativas que apontam para um défice de dezenas de médicos e centenas de enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Além disso, indicam que apenas cerca de um terço dos médicos que trabalham em cuidados paliativos têm competência em Medicina Paliativa pela Ordem dos Médicos, comprometendo a excelência dos cuidados prestados.

Por outro lado, a distribuição territorial dos recursos não é equitativa e embora haja equipas de cuidados paliativos em todos os distritos de Portugal continental, na Madeira e nos Açores, há ainda zonas do país sem equipa comunitária ou domiciliária. O distrito de Viana do Castelo continua sem nenhuma unidade de internamento de cuidados paliativos e há ainda serviços de pediatria sem profissionais com formação especializada.

A Ordem dos Médicos tem sido clara considerando que não é aceitável discutir escolhas extremas no fim de vida sem antes assegurar um acesso universal e equitativo a cuidados paliativos de qualidade. Infelizmente, esta área tem sido relegada para segundo plano pelo poder político, pelo Ministério da Saúde e pela Direção Executiva do SNS. A consequência é uma rede fragmentada, insuficiente e sobrecarregada, dependente da boa vontade e da resiliência dos profissionais.

Apesar das dificuldades, a mudança é possível. As equipas de suporte domiciliário são prova disso, demonstrando que é possível acompanhar os doentes no conforto do seu lar, rodeados pela sua rede afetiva, garantindo dignidade e qualidade de vida. Por outro lado, as equipas de suporte intra-hospitalares (EIHSCP) promovem a filosofia dos cuidados paliativos em todos os serviços hospitalares, contribuindo para a formação dos profissionais e consequentemente, para a melhoria dos cuidados prestados a doentes e famílias. Contudo, estas boas práticas não podem depender de iniciativas isoladas: é preciso vontade política, coordenação e planeamento a nível nacional.

A dedicação e entrega das equipas é notável, mas a escassez de recursos humanos, a exaustão e a falta de condições adequadas são riscos reais. Sem reforço humano qualificado, não haverá progresso sustentável.

Portugal surge no Atlas Europeu de Cuidados Paliativos 2025 com indicadores positivos em áreas como a formação, a investigação e as infraestruturas. Seis das oito escolas médicas incluem já a formação obrigatória em cuidados paliativos, sinalizando uma mudança cultural relevante. Mas o mesmo relatório alerta para a necessidade de colmatar as desigualdades territoriais e aumentar a especialização de todos os profissionais envolvidos.

Importa sublinhar que os cuidados paliativos não são apenas uma questão ética ou de compaixão: aliviam os sofrimentos, evitam internamentos e tratamentos fúteis, respeitam a autonomia das pessoas e acrescentam qualidade a cada momento de vida. São, em suma, a medicina humanista na sua expressão mais elevada.

Fechar esta lacuna implica atualizar a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos e o Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos, ajustando-os à nova organização do SNS; caminhar para uma maior diferenciação dos médicos que desenvolvem a sua atividade nesta área; valorizar todos os profissionais que nela trabalham; garantir que todas as ULS e regiões autónomas dispõem de equipas especializadas com cobertura hospitalar e comunitária; aumentar o número de camas de forma articulada com equipas móveis sólidas; e implementar auditorias externas e indicadores de qualidade centrados no doente e na família.

Portugal tem atualmente massa crítica, experiência e vontade de ser um exemplo para o mundo de organização funcional dos cuidados paliativos integrada nos três níveis de cuidados de saúde e acessível a todos. É, pois, urgente que os cuidados paliativos em Portugal deixem de ser uma prioridade adiada e passem a ser uma prioridade efetiva, suportada em políticas claras, investimentos concretos e ações eficazes.

Quando curar já não é possível, cuidar torna-se o gesto médico mais pleno. Garantir o acesso universal a cuidados paliativos é uma obrigação ética, uma necessidade de saúde pública e uma questão de justiça social. É, acima de tudo, assegurar que, até ao último instante, a vida é vivida com sentido, dignidade e amor.

Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos