Reflexões de uma carreira dedicada ao cuidado, denunciando o desgaste, a desvalorização e a urgência de mudança na profissão.
Encerrar 26 anos de carreira na enfermagem não é apenas fechar um capítulo. É assumir, com coragem, a verdade que tantos de nós carregamos em silêncio. Não deixo a enfermagem por falta de amor — deixo porque durante demasiado tempo se pediu aos enfermeiros que fossem inquebráveis, infalíveis e inesgotáveis. E ninguém, por mais vocação que tenha, consegue continuar a dar de si quando o sistema insiste em ignorar o desgaste de quem cuida.
Nestes anos, dediquei-me por inteiro. Cuidar foi sempre mais do que uma tarefa, foi o meu modo de estar no mundo. Acompanhei vidas em momentos-limite, fui presença quando a solidão apertava, dei palavras de força quando o medo dominava. Segurei mãos que tremiam de medo, ajudei a controlar crises inesperadas, acompanhei partos e despedidas, senti o impacto de diagnósticos devastadores. Vi lágrimas, vi coragem, vi despedidas e renascimentos. Vivi situações em que cada decisão podia significar a diferença entre a vida e a morte. É esta profundidade humana que torna a enfermagem tão nobre e indispensável.
Mas, por detrás deste lado luminoso, há uma sombra que raramente encontra espaço para ser dita: o desgaste brutal que se entranha no corpo e na alma. Falo dos turnos intermináveis, das equipas esgotadas, das responsabilidades gigantescas suportadas com recursos mínimos. Falo de noites em claro, de turnos consecutivos, de decisões que pesam sobre nós e sobre os pacientes. Falo de casos em que nos entregamos tanto que voltamos para casa exaustos, sem conseguir desligar a mente. Falo do cansaço que não passa, das dores físicas, das emoções acumuladas que ninguém vê e que insistem em permanecer. Falo do peso emocional de ser porto seguro para todos, mesmo quando já não somos porto nenhum para nós próprios.
Há quem insista em romantizar a enfermagem como uma vocação absoluta. Mas a vocação, por si só, não sustenta uma profissão. A vocação não cura o desgaste. A vocação não substitui condições dignas. A vocação não serve de escudo para a falta de reconhecimento. E é exatamente esta romantização que tem permitido que a enfermagem continue a ser sobrecarregada, subvalorizada e tantas vezes desrespeitada.
Ao longo destes 26 anos, vi colegas brilhantes chegarem ao limite. Vi profissionais de excelência abandonarem a profissão por exaustão, não por falta de competência. Vi sofrimento disfarçado com sorrisos para não falhar com ninguém. Vi talento desperdiçado porque o sistema se habituou a sugar mais do que devolve. Vi noites em que ninguém conseguia completar todos os cuidados prometidos, e senti a frustração silenciosa de cada colega. Vi pacientes aguardarem cuidados que simplesmente não podiam ser entregues no tempo que mereciam. E ainda vi a enorme dificuldade em falar destes temas sem culpa — como se reconhecer o próprio esgotamento fosse uma falha, e não a consequência direta de anos de negligência estrutural.
A verdade é simples e dura: a enfermagem sustenta o sistema de saúde, mas continua a ser tratada como se fosse facilmente substituível. Exige-se de nós técnica, humanidade, rapidez, precisão, empatia, equilíbrio emocional — tudo ao mesmo tempo, todos os dias. Mas quando chega a hora de valorizar quem faz tudo isto possível, surgem hesitações, atrasos, omissões.
Não se pode continuar a fingir que está tudo bem. Não está! E enquanto esta realidade não for encarada de frente,
continuaremos a perder profissionais experientes, dedicados e profundamente humanos. Sem melhores condições, a enfermagem não continuará a ser o pilar que sempre foi.
Saio desta profissão com orgulho imenso — orgulho no caminho que fiz, nas vidas que toquei, nas pessoas que vi erguerem-se com o meu apoio. Mas saio também com lucidez. A lucidez de quem sabe que é urgente defender aqueles que permanecem. A lucidez de quem reconhece que a mudança não virá sem coragem, sem voz e sem incômodo. A lucidez de quem não quer que a próxima geração pague o mesmo preço.
E por isso deixo, com total clareza, três verdades que já não podem ser silenciadas:
A enfermagem salva vidas — mas está a perder as suas por falta de respeito.
Sem enfermeiros não há cuidados — e sem condições não haverá enfermeiros.
Não é vocação que falta à enfermagem; é valorização.
Que estas palavras sirvam para mais do que encerrar a minha carreira. Que sirvam para abrir consciências, despertar decisões e, acima de tudo, proteger aqueles que dedicam a vida a cuidar da vida dos outros. Porque cuidar é nobre. Mas exigir dedicação ilimitada sem reconhecimento é injusto e insustentável. E é por isso que este testemunho não é apenas uma despedida: é um grito por justiça, dignidade e respeito para todos os que permanecem na linha da frente da enfermagem.
A enfermagem não é apenas uma profissão; é uma responsabilidade social que exige reconhecimento real, condições dignas de valorização. É hora de o sistema perceber que quem cuida não pode continuar a pagar o preço sozinho.
Carla Ribeiro
