
Desde os laboratórios até à criação de uma plataforma inovadora, Ângela Leal construiu uma carreira movida pela paixão pela segurança alimentar e pelo desejo de impactar positivamente o setor. Com coragem para transformar desafios em oportunidades, tem ajudado empresas e profissionais a colocarem a ciência em prática — de forma simples, eficaz e alinhada com as exigências reais do dia a dia.
Para começarmos, poderia contar-nos um pouco sobre si? Quem é Ângela Leal e o que a motivou a seguir uma carreira na área da engenharia?
Sou engenheira de segurança de formação e especialista na área alimentar. Desde muito cedo tive contacto com o setor, uma vez que o meu pai é empresário na área agroalimentar. O meu percurso profissional começou nos laboratórios, e rapidamente desenvolvi um interesse profundo pela forma como os alimentos são produzidos, processados e controlados. Percebi que a engenharia me permitiria aliar o rigor científico à vertente prática, com impacto direto nas empresas. Ao longo da minha carreira, tive oportunidade de trabalhar na indústria, na consultoria e também na formação. Essa diversidade de experiências deu-me uma visão abrangente dos desafios do setor e reforçou a minha motivação para encontrar soluções práticas e eficazes.
Quais considera terem sido os momentos mais marcantes da sua carreira até ao momento? Há algum projeto ou conquista de que se orgulhe particularmente?
Tive vários momentos marcantes, mas há um em especial que foi determinante na minha trajetória. Após oito anos a trabalhar numa organização, tomei a decisão de sair para abraçar um novo desafio profissional. No entanto, ao fim de um mês percebi que não havia intenções claras de me contratarem. O que me propunham, na prática, era absurdo, foi um verdadeiro balde de água fria. Era evidente que não fazia sentido continuar, mas sair daquela situação exigiu coragem. E, curiosamente, foi esse revés que me deu o impulso final para lançar a SARA HACCP, um projeto que já estava idealizado há algum tempo, mas que ainda não tinha tido a coragem de o concretizar. Esse episódio foi um ponto de viragem. Transformei uma desilusão num projeto que hoje me orgulha profundamente. Criar a SARA HACCP e ver o seu impacto real nas empresas, ajudar profissionais a trabalhar com mais segurança, eficiência e confiança, é sem dúvida a maior conquista da minha carreira até agora.

Como tem sido a sua experiência enquanto mulher numa área tradicionalmente dominada por homens? Que obstáculos ainda enfrenta no seu dia a dia?
Apesar de a engenharia alimentar ter um número significativo de mulheres, os cargos de decisão continuam maioritariamente ocupados por homens. É necessário demonstrar competência continuamente, sobretudo quando se lidera um projeto tecnológico. Acredito que é essencial mostrar que liderança, inovação e rigor não têm género. Ao longo da minha carreira, senti que ser mulher numa área técnica ainda levanta algumas barreiras, sobretudo em contextos mais conservadores. No entanto, acredito que o setor tem evoluído, e hoje sinto que o respeito é conquistado com competência, consistência e resultados. Ainda assim, continuam a existir desafios, pelo que é importante continuar a abrir caminho para outras mulheres, mostrando que é possível liderar projetos de inovação com impacto real, também na engenharia.
Em 2018, fundou a plataforma SARA HACCP. Pode explicar-nos em que consiste este projeto e o que a levou a desenvolvê-lo?
A SARA HACCP nasceu com o objetivo de transformar a forma como as empresas do setor alimentar gerem a segurança dos alimentos. SARA é o acrónimo de Sistema de Automação e Registo Alimentar e surgiu da necessidade clara de simplificar e digitalizar os registos do sistema HACCP, que ainda são, em muitos casos, feitos em papel. Ao longo do meu percurso, percebi que muitas equipas operacionais sentiam que este processo era uma obrigação burocrática, em vez de o verem como uma ferramenta de prevenção real. A SARA foi desenvolvida precisamente para mudar isso, para tornar os registos mais intuitivos, acessíveis e fiáveis, promovendo uma cultura de segurança alimentar prática e sustentada.
Que benefícios concretos oferece a SARA HACCP aos profissionais do setor da restauração?
A SARA HACCP traz benefícios muito concretos para quem trabalha no setor da restauração. Desde logo, permite eliminar o uso de papel e digitalizar os registos obrigatórios do sistema HACCP, o que reduz significativamente o tempo gasto em tarefas administrativas. Além disso, emite alertas em tempo real sempre que há falhas ou desvios nos parâmetros críticos, o que ajuda a prevenir problemas antes que estes se agravem. A plataforma organiza toda a documentação de forma digital, facilitando a preparação para auditorias ou inspeções. Outro ponto importante é a formação contínua: a SARA inclui conteúdos educativos e boas práticas adaptadas ao contexto real dos restaurantes, capacitando as equipas para tomar decisões informadas no dia a dia.
Como é feito o processo de adesão e formação dos profissionais que passam a utilizar a plataforma?
O processo de adesão à SARA HACCP é simples e adaptado à realidade de cada cliente. Começamos por analisar o funcionamento do estabelecimento, os seus fluxos operacionais e as suas necessidades específicas. Com base nisso, configuramos a plataforma à medida, garantindo que os registos obrigatórios e os pontos críticos estão devidamente mapeados. Após a implementação, damos formação prática às equipas operacionais, com enfoque na utilização diária da SARA e nos princípios da segurança alimentar. A formação é contínua, com acesso a conteúdos atualizados e acompanhamento por parte da nossa equipa técnica, sempre disponível para esclarecer dúvidas e apoiar os utilizadores.


Como tem sido a aceitação da plataforma no mercado? Que tipo de feedback tem recebido dos utilizadores?
A aceitação da SARA HACCP tem sido muito positiva e tem vindo a crescer de forma consistente desde o seu lançamento. Os profissionais do setor reconhecem o valor de uma ferramenta que não só facilita o cumprimento das obrigações legais, como também torna os processos mais eficientes e menos suscetíveis a erros. Recebemos frequentemente feedback sobre a facilidade de uso da plataforma, a utilidade dos alertas automáticos e a rapidez com que é possível aceder aos registos em caso de auditoria. Muitos utilizadores destacam também o apoio técnico próximo e a capacidade da SARA de se adaptar às realidades de diferentes tipos de estabelecimentos, desde pequenos negócios familiares a grandes grupos de restauração.
Como tem evoluído o papel da tecnologia no setor alimentar e de segurança alimentar, e de que forma a sua plataforma acompanha essas mudanças?
O papel da tecnologia no setor alimentar tem evoluído de forma exponencial. Hoje, já não basta cumprir os requisitos legais, é preciso antecipar riscos, reduzir desperdícios, responder a auditorias em tempo real e garantir total rastreabilidade. A digitalização, a automatização de processos, o uso de sensores e a inteligência artificial estão a transformar a forma como produzimos e controlamos os alimentos. A SARA HACCP acompanha esta evolução incorporando funcionalidades que respondem às exigências atuais do setor: alertas inteligentes, registos digitais personalizáveis, relatórios em tempo real e suporte técnico especializado. Acreditamos que a tecnologia deve estar ao serviço das equipas no terreno, ajudando-as a tomar decisões mais informadas e a agir mais rapidamente.
Neste mês em que se celebra o Dia Internacional da Mulher na Engenharia, que mensagem gostaria de deixar às jovens que ambicionam seguir esta área?
Gostaria de lhes dizer que a engenharia precisa de mulheres, da sua visão, da sua sensibilidade, da sua capacidade de conciliar rigor técnico com pensamento crítico e empático. Não se deixem limitar por estereótipos ou pela ausência de referências, sejam vocês a referência. Sigam o vosso percurso com confiança, abracem os desafios com coragem e procurem sempre soluções que façam a diferença. A engenharia é uma ferramenta poderosa para transformar o mundo, e todas nós temos lugar nessa transformação. Acumulem conhecimento como quem junta tesouros pois a competência é inevitavelmente reconhecida.
Este mês também foi celebrado o Dia Mundial da Segurança Alimentar, que destaca o tema “Science in Action”. O que significa, para si, pôr a ciência em prática no dia a dia das operações?
Significa sair da teoria e aplicar o conhecimento técnico nas rotinas reais das equipas. É usar dados, testes laboratoriais, sensores e registos fiáveis para tomar decisões. Mas é também garantir que quem está no terreno compreende o porquê das ações que executa. A ciência em ação é feita de processos bem desenhados, tecnologia adequada e, sobretudo, de pessoas capacitadas e conscientes do seu papel na prevenção de riscos.
Na sua opinião, quais são os maiores desafios atuais na prevenção de riscos alimentares?
Um dos maiores desafios é garantir consistência na execução. Podemos ter planos HACCP bem estruturados, mas se não forem aplicados com rigor, tornam-se ineficazes. Outro desafio é a perceção de que segurança alimentar é “apenas” uma exigência legal. Quando não se reconhece o seu impacto direto na saúde pública, o compromisso esvazia-se. Por isso, é urgente reforçar a formação, desenvolver uma cultura de segurança e apostar em soluções tecnológicas que ajudem as equipas a atuar com confiança e conhecimento.

Como é que a SARA HACCP contribui para tornar essa “ciência em ação” mais acessível às empresas?
A SARA foi pensada para isso mesmo: operacionalizar a ciência no terreno. Digitalizar registos, gerar alertas, organizar dados e facilitar a rastreabilidade. Mas mais do que isso, promove uma cultura de responsabilidade e prevenção. É uma ferramenta que traduz a complexidade técnica em ações claras e acessíveis para quem está nas cozinhas, nas linhas de produção ou no armazenamento. É aí que a ciência tem de acontecer, e é aí que a SARA atua.
Como se vê profissionalmente dentro de cinco anos? Que metas ou projetos gostaria de concretizar até lá?
Vejo-me a continuar a trabalhar com o mesmo propósito: contribuir para um setor alimentar mais seguro, eficiente e sustentável. Nos próximos cinco anos, gostaria de consolidar a presença da SARA HACCP em novos mercados, expandir funcionalidades que integrem ainda mais tecnologia e inteligência artificial nos processos de controlo e reforçar a componente formativa da plataforma. Quero também continuar a colaborar com instituições académicas e profissionais, partilhando conhecimento e promovendo a valorização do papel dos técnicos de segurança alimentar. Acima de tudo, ambiciono liderar um projeto que coloca a ciência ao serviço das pessoas e que tenha impacto real na saúde pública.
Qual considera ser o seu contributo para o setor da segurança alimentar?
Acredito que o futuro será construído por pessoas que combinam conhecimento técnico com coragem para desafiar os padrões atuais. Não basta sabermos o que deve ser feito, é preciso ter a ousadia de o fazer acontecer, todos os dias. Se há algo que aprendi ao longo deste percurso é que a ciência só cumpre o seu propósito quando sai do papel e se torna uma ação concreta, nas mãos de profissionais bem formados, em ambientes que valorizam a prevenção e com líderes que não têm medo de inovar. Daqui a cinco anos, quero olhar para trás e saber que contribuí para esse movimento. Que ajudei a transformar a forma como pensamos, ensinamos e praticamos a segurança alimentar. E, acima de tudo, que continuei fiel ao meu propósito: proteger pessoas através da prevenção de riscos. O meu maior compromisso é este: garantir que a ciência não fique esquecida nos dossiers. Que se transforme em comportamento, em cultura, em decisões que protegem o que temos de mais essencial, a confiança em cada alimento que chega à nossa mesa.
