: 26 de Setembro, 2025 Redação:: Comentários: 0

A legislação em vigor assinala um progresso relevante, embora a sua concretização prática ainda dependa da superação de vários desafios. No artigo anterior, destaquei o papel fundamental da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos e do Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos (2021-2023) na ampliação da cobertura desses cuidados em todo o país.

Nesta segunda parte, explorarei as nuances entre os princípios estabelecidos e a sua efetiva aplicação no terreno. Apesar do valor intrínseco da legislação em vigor e dos compromissos assumidos pelos sucessivos governos, é inegável que a implementação dos seus princípios e medidas estratégicas enfrenta desafios significativos. Entre os principais obstáculos, destacam-se a insuficiência de financiamento e a lentidão na concretização das metas estabelecidas, que comprometem a eficácia da aplicação desses normativos no terreno. A prática revela que a política atual para os Cuidados Paliativos carece de um orçamento robusto e continuado, que assegure não só a criação de novas unidades e a contratação de profissionais especializados, mas também a manutenção e capacitação das infraestruturas e equipas já existentes. Esta limitação financeira compromete gravemente a eficácia do Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos Cuidados Paliativos (2021-2023), transformando muitas das metas propostas em promessas vazias para os cidadãos que necessitam de Cuidados Paliativos. É, portanto, imprescindível que o atual Governo faça a diferença nesta matéria. Estudos da OMS sublinham que o investimento em Cuidados Paliativos não é apenas uma necessidade humanitária, mas uma medida de eficiência, pois reduz a pressão sobre os serviços de urgência e internamentos evitáveis, gerando uma poupança significativa para os sistemas de saúde.

Além das restrições orçamentais, existe uma limitação estrutural mais profunda: a ausência de um modelo de Cuidados Paliativos suficientemente flexível e adaptável às necessidades individuais de cada pessoa e respetiva família. Como foi identificado num estudo recente, a falta desta flexibilidade compromete não só a qualidade dos cuidados, como também torna os Cuidados Paliativos uma prática rígida e impessoal, contrariando os princípios humanistas e éticos que deveriam orientá-los. Os Cuidados Paliativos, pela sua natureza, exigem uma abordagem centrada na pessoa, o que implica uma adaptação constante às necessidades físicas, psicológicas, emocionais, espirituais e sociais das pessoas, bem como um compromisso com a sua dignidade e autonomia. Esta abordagem personalizada é reconhecida como uma das principais diretrizes internacionais para os Cuidados Paliativos, conforme defendido pela Comissão Europeia – que recomenda a criação de políticas de saúde que promovam a adaptabilidade e flexibilidade no atendimento às necessidades da pessoa em todas as fases da doença.

Assim sendo, sem uma política de financiamento consistente e uma estrutura organizacional que permita uma resposta humanizada e personalizada, os Cuidados Paliativos em Portugal continuarão a ser limitados. A humanização dos cuidados de saúde é central para a prestação de cuidados de qualidade, particularmente num contexto em que as necessidades das pessoas transcendem as intervenções técnicas.

No âmbito dos Cuidados Paliativos, humanizar significa proporcionar uma experiência de cuidado que valorize a dignidade, a autonomia e o bem-estar emocional, social e espiritual de cada pessoa. Em Portugal, a política de humanização dos cuidados de saúde é formalizada através de iniciativas do SNS e da Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde (CNHCS-SNS). Cabe a esta entidade definir normas e recomendações que promovem uma abordagem integral e compassiva no acompanhamento de pessoas em situação de fragilidade, desde o diagnóstico até à fase final de vida. O Plano de Ação da CNHCS-SNS salienta que a humanização se traduz numa atitude e prática que coloca a pessoa no centro dos cuidados. Isto implica considerar as necessidades individuais, promover a empatia e a escuta ativa, e criar condições para que a pessoa participe de forma esclarecida nas decisões sobre o seu tratamento. A humanização procura, assim, contrastar com uma abordagem centrada exclusivamente na doença, promovendo um cuidado que valoriza a pessoa holisticamente. O plano realça que a implementação de cuidados humanizados tem o potencial de reduzir complicações e acelerar a recuperação, o que o torna não só uma prática ética, mas também uma prática eficaz.O nosso país tem avançado na cons-trução de uma política de humanização que abrange todas as áreas de cuidados, incluindo os Cuidados Paliativos. A Lei de Bases do SNS (Lei n.º 95/2019) e o Decreto-Lei n.º 102/2023 estabelecem que o respeito pela dignidade e auto-nomia do utente, a empatia e o apoio emocional devem estar presentes em todas as etapas dos cuidados em saúde. Estas leis reforçam a obrigatoriedade da humanização como uma compo-nente essencial do SNS e promovem o desenvolvimento de políticas de apoio à formação contínua dos profissionais em competências humanas e de comu-nicação, uma dimensão crucial para os Cuidados Paliativos.

A criação do Serviço Integrado de Cuidados Paliativos (SICP) nas Unidades Locais de Saúde (ULS) segue este princípio de humanização, ao implementar um modelo de atendimento contínuo e próximo da pessoa, que visa reduzir a fragmentação dos cuidados e fortalecer o vínculo entre profissionais e pessoas. Contudo, a plena implementação de todos estes princípios exige um compromisso contínuo com a formação dos profissionais e a alocação de recursos adequados, para que a humanização dos cuidados se converta numa prática padronizada e acessível em todo o território nacional. Em suma, para que Portugal possa garantir um sistema de Cuidados Paliativos acessível, inclusivo e humanizado, é imprescindível um compromisso renovado das entidades políticas com uma política de saúde prática e sustentada. Este compromisso exige um aumento do financiamento, destinado a expandir a rede de serviços de Cuidados Paliativos e a implementar uma formação contínua e obrigatória para todos os profissionais de saúde. Acresce a necessidade de campanhas de sensibilização que desmistifiquem os Cuidados Paliativos, esclarecendo os seus objetivos.

Daniela Cunha, Vogal do Conselho Fiscal da ASPE – Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros