
A cada 12 de maio, o calendário assinala o Dia Internacional do Enfermeiro. À superfície, uma data simbólica. Mas, num tempo de exaustão sistémica, onde a insustentabilidade do modelo biomédico vertical é uma evidência, a comemoração deste dia deveria deixar de ser, de uma vez por todas, uma mera celebração, para se afirmar como um marco com maior impacto político e estratégico, ou seja, uma oportunidade inadiável de reconfiguração estrutural do nosso sistema de saúde!! E é neste horizonte que se inscreve o presente artigo de opinião: um apelo crítico, informado e exigente, à reinvenção do lugar da profissão de Enfermagem na arquitetura do Poder em Saúde no século XXI.
Num tempo em que o sistema de saúde se confronta com uma crise de sustentabilidade estrutural, profunda escassez de capital humano, fuga de talento e o desajustamento entre os modelos organizacionais vigentes e as exigências reais da população, torna-se crucial que questionemos as bases sobre as quais se constrói ou se deve construir o edifício da governance clínica em Portugal. Uma reflexão que não pode (ou não deve!) continuar a ser adiada, sob pena de continuarmos a perpetuar uma arquitetura institucional que silencia, sistematicamente, a inteligência diretiva da Enfermagem – precisamente aquela que, na prática, assegura a continuidade, a integração e a humanização dos cuidados de saúde prestados à nossa população.
Sem ambiguidades ou falsos moralismos, afirmamos neste dia comemorativo, que a Enfermagem representa a coluna vertebral do sistema de saúde português (e não só). A centralidade da profissão é empiricamente evidente. Os enfermeiros são os únicos profissionais com presença constante, que cuidam ao longo de todo o ciclo de vida dos cuidados: desde a prevenção à reabilitação, do nascimento à morte, do hospital ao domicílio.
Segundo dados da Direção-Geral da Saúde, os enfermeiros representam mais de 40% da força de trabalho em Saúde em Portugal, assegurando a maioria dos contactos com os utentes em contexto de internamento. Contudo, esta centralidade operacional contrasta de uma forma gritante com a sua ausência em cargos de liderança. Senão vejamos: são raras as presenças em Direções Clínicas ou grupos de decisão estratégica do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em 2024, os dados da Direcção-Geral da Saúde mostraram que menos de 5% dos cargos de liderança técnica e executiva nos hospitais públicos são ocupados por enfermeiros. Esta marginalização não é neutra: compromete a eficácia organizacional, mina a continuidade dos cuidados e perpetua um modelo hierárquico que já não responde à complexidade dos contextos contemporâneos.
Ao ignorar-se a presença dos profissionais de enfermagem nos principais processos estratégicos de decisão, nomeadamente os de natureza política e legislativa, todo o sistema se torna funcionalmente cego! Uma miopia organizacional que não é apenas injusta, mas também é, inevitavelmente, ineficiente!! Um recente relatório, publicado em 2023 pelo European Observatory on Health Systems, demonstrou inequivocamente que estruturas de saúde que integram os enfermeiros em posições de (co)liderança apresentam melhores indicadores de continuidade assistencial, menor rotatividade de pessoal e um evidente aumento na satisfação dos utentes! Nesta matéria os dados empíricos são bastante claros e é um atrevimento ignorá-los!
O problema não está, portanto, na ausência de competências, mas na arquitetura de Poder que as neutraliza. O problema central é sabermos que o conhecimento produzido na práxis diária da Enfermagem – um saber que nasce do contacto prolongado, da escuta ativa, da leitura dos contextos sociais e clínicos em simultâneo – continua a ser interpretado como sendo auxiliar e não diretivo!! Esta distorção exige uma transformação institucional urgente, que inclua a criação de cargos de liderança específicos para os enfermeiros, com acesso vinculativo aos órgãos de direção hospitalar, regional e nacional, autonomia orçamental e capacidade de iniciativa estratégica!!
A exclusão dos enfermeiros dos núcleos de decisão não é, obviamente, um acidente organizacional, mas um sintoma de um paradigma que persiste em manter a organização do sistema de saúde a partir de uma lógica hierárquica, verticalizada e centrada na figura do médico como único polo de autoridade clínica. Este modelo, enraizado nas instituições de Saúde do século XX e moldado por uma visão biomédica da doença, encontra-se hoje profundamente desfasado das exigências de um sistema de saúde centrado na pessoa, na continuidade e na integração de cuidados. A fragmentação dos serviços, a ineficiência dos fluxos assistenciais e os desencontros entre os diferentes níveis de cuidados são manifestações diretas de um modelo profundamente esgotado.
Em contraste, sabemos bem que a Enfermagem é a profissão que mais proximamente consegue reconhecer os interstícios, as falhas e os silêncios do sistema de saúde. Os enfermeiros operam numa inteligência relacional, moldada por uma escuta ativa, uma observação clínica continuada e um conhecimento acumulado em tempo real das condições sociais, psicológicas e culturais dos utentes. Mas, de facto, esta inteligência é ampla e intencionalmente invisibilizada porque não se enquadra na gramática técnica que habitualmente estrutura os discursos institucionais contemporâneos. Esta é uma das razões pelas quais os enfermeiros são muitas vezes reconhecidos como “indispensáveis” em cerimónias de natureza simbólica, ou convidados para congressos e conferências para encher as salas e bater palmas, mas quase(!) sempre marginalizados em todas as instâncias onde se desenha o futuro do sistema de saúde!
O resultado desta marginalização tem sido devastador! Esta falta de reconhecimento institucional tem vindo a traduzir-se numa fuga massiva de profissionais altamente qualificados para o estrangeiro. De acordo com a Ordem dos Enfermeiros, cerca de 60% dos profissionais recém-formados pedem a declaração para poderem exercer no estrangeiro. Mas, ao contrário do que se tem vindo amplamente a propalar nos media, esta hemorragia de talento não é apenas motivada por questões de natureza salarial. Estudos recentes, como o da Plataforma de Jovens Profissionais de Saúde, revelam que os fatores mais apontados para a intenção de emigração incluem a ausência de progressão na carreira, o elevado nível de stress e sobretudo, a perceção de que a sua voz não é escutada!! Este sentimento de invisibilidade funcional e estratégica é agravado pela inexistência de carreiras dignas que valorizem a liderança dos enfermeiros, compatíveis com o seu elevado nível de formação profissional e académico, pela ausência de autonomia orçamental e pela raríssima presença em conselhos técnicos vinculativos.
Mas a situação ganha contornos ainda mais graves com o declínio do interesse dos jovens pelas profissões de saúde. Entre 2018 e 2022, segundo o relatório What do we know about young people’s interest in health careers, da OCDE, muitos países assistiram a uma queda significativa de candidatos aos cursos de Enfermagem, um reflexo direto da exposição mediática acerca das condições laborais durante a pandemia. Portugal regista ainda um leve aumento nas intenções declaradas, mas já com evidentes sinais de estagnação e descida nas admissões. A falta de condições de trabalho e de perspetivas de progressão na carreira são fatores decisivos para esta desmotivação crescente. Sobre este ponto, considero que deveremos atuar com urgência e de forma preventiva!
Por outro lado, a produção científica em Enfermagem deve ocupar definitivamente um lugar central na agenda nacional, não como disputa territorial com outras áreas do saber, mas antes como afirmação de uma epistemologia e ontologia próprias: a do cuidado continuado, situado e informado pela realidade vivenciada!!
Sobre esta matéria, o que sabemos é que a investigação em Enfermagem continua a ser amplamente marginalizada nos financiamentos públicos, tratada como um luxo e não como um instrumento vital para a inovação dos cuidados. Portugal continua, assim, a investir pouco em ciência orientada para a prática clínica. Esta é uma realidade que contrasta com os sistemas de saúde mais avançados, onde os enfermeiros lideram redes de cuidados, desenham políticas públicas e contribuem ativamente para a definição de indicadores de desempenho. Por exemplo, países como o Canadá, a Holanda e a Nova Zelândia oferecem exemplos robustos de sistemas onde a produção científica da Enfermagem sustenta reformas organizacionais e políticas públicas com resultados comprovados.
Reformular a arquitetura do SNS – pilar inconfundível do nosso sistema de saúde que serve de modelo para muito do que se faz nos setores privado e social – é, pois, uma urgência histórica. Implica reconhecer a profissão de Enfermagem como ator central da governance clínica, com acessos vinculativos a estruturas de decisão, funções de liderança próprias, autonomia estratégica e orçamental e a presença sistemática nos conselhos de administração/estruturas executantes ou definidoras das políticas de Saúde. Mas esta mutação só será eficaz se for acompanhada por uma profunda revolução cultural. O século XXI exige um tipo de liderança clínica horizontal, interdependente e transdisciplinar, capaz de reconhecer o valor da inteligência relacional, da escuta clínica prolongada e da mediação entre níveis de cuidados. Exige, em suma, tudo aquilo que a Enfermagem cultivou, frequentemente em silêncio, durante as últimas três décadas!
Num sistema que se pretende centrado na pessoa, a liderança não pode continuar a ser um privilégio reservado a uma profissão ou a uma visão meramente tecnocrática. Deve ser uma função orgânica, distribuída, legitimada pela prática e orientada pelos resultados obtidos. Perante esta realidade, a Enfermagem, por tudo o que representa e realiza, deve deixar de ser apenas celebrada no Dia Internacional do Enfermeiro e passar a ser convocada para o centro da reconfiguração do futuro do sistema. Porque um sistema que não reconhece o saber que o sustenta está, inevitavelmente, condenado ao colapso.
Portugal ainda vai a tempo de escolher outro caminho. Mas este caminho exige coragem política, visão estratégica e ontológica e, acima de tudo, justiça epistemológica. Não podemos, pois, continuar a investir unicamente em rituais de retórica vazia, mas antes convocar urgentemente à ação concreta! Os enfermeiros não são apenas meros executores. São estrategas do cuidado! Intelectuais práticos!! Arquitetos de soluções num sistema que só sobreviverá se, finalmente, escutar aqueles que o conhecem por dentro!!!
Este é o tempo de abrir as portas do Poder a quem, há décadas, segura com firmeza o coração do sistema de saúde em Portugal! Porque sem eles, o sistema colapsa. E porque com eles há, garantidamente, um futuro!!
Sérgio Serra, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da ASPE – Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros
