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O envelhecimento da população mundial é um facto incontornável e provavelmente uma das transformações sociais mais relevantes deste século, com efeitos transversais a toda a sociedade. A previsão da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 275 milhões de pessoas com demência até 2050 é avassaladora.

O mais recente relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) “A sociedade em resumo 2024 – Indicadores sociais da OCDE” – O desafio demográfico e o Papel do PESSOAS 2030, traça o retrato da evolução demográfica deixando alertas muito importantes sobre a necessidade de políticas, designadamente da adaptação dos serviços de saúde para acomodar as necessidades das populações e proporcionar uma vida com qualidade aos idosos. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é, no contexto nacional, o pilar que garante a universalidade de cuidados de saúde aos portugueses e, pese embora, se sucedam programas de promoção do envelhecimento ativo, programas e planos de promoção de saúde, o pendor do SNS ainda assenta essencialmente no tratamento da doença aguda.

Lúcia Leite, Presidente da ASPE

Envelhecimento e demência não são sinónimos, mas muitas vezes estão associados pelo processo degenerativo simultâneo!

Embora as demências tenham etiologia variada, as manifestações são comuns e traduzem-se em perdas de memórias recentes, perda de objetos do quotidiano, desorientação no tempo e no espaço, dificuldades na comunicação, alterações de humor, perda de iniciativa e interesse, dificuldade em realizar as atividades de vida diária e consequente perda de autonomia. Os cuidados de saúde primários e os serviços hospitalares estão vocacionados e dimensionados para o tratamento da doença aguda com o objetivo claro de minimizar o tempo de internamento – como recomendam as boas práticas. Contudo, no atual cenário sócio demográfico é cada vez mais difícil garantir esta meta e, não raras as vezes, os internamentos prolongam-se para além do tratamento da doença ou da resolução cirúrgica do problema que originou o internamento. Os utentes do SNS são cada vez mais velhos, com várias doenças e incapacidades, o que obriga a abordagem multiprofissional, a respostas adequadas em contexto de internamento, mas sobretudo a respostas de proximidade que assegurem a permanência destes doentes em ambiente familiar, mas com apoio profissional. Os constrangimentos que o envelhecimento e as demências causam na prestação de cuidados a doentes agudos também não podem ser ignorados! As instituições terão que se adaptar para tratar destas pessoas que, muitas vezes, exibem destreza física e até bastante mobilidade, mas que pela degradação das suas funções cognitivas necessitam de espaços e equipamentos adequados, bem assim como reforço das horas de cuidados por cuidadores profissionais e informais.

Demora nos internamentos, falta de enfermeiros no SNS, e enfermarias sem condições são grandes entraves ao tratamento de doenças mentais

É no cuidar que se agudizam as dificuldades! E em serviços de internamentos que funcionam com indicadores que asseguram o financiamento, como é o caso das taxas de ocupação de camas ou os tempos de demora média dos internamentos, onde as pessoas dementes são um entrave aos resultados de eficiência que as políticas promovem. Bem sabemos todos que a frieza dos números não considera as necessidades individuais de pessoas que, não necessitando de tratamento médico, precisam de apoio e cuidados diários que as suas famílias não conseguem proporcionar. No SNS, os enfermeiros já são poucos para assegurar o tratamento da doença que motivou o internamento. Como se poderão desdobrar para prestar a assistência necessária a idosos dependentes, com demência, que necessitam de apoio para as suas atividades de vida diária mais básicas, como alimentar-se, lavar-se, vestir-se, caminhar, cuidar da higiene pessoal e até realizar atividades que promovam a atenção, a concentração e a memória.

A situação agrava-se quando estas pessoas idosas e com demência são mantidas em enfermarias sem o mínimo de condições, misturados com doentes agudos jovens ou adultos em fase ativa com necessidades assistenciais tão diferentes. É tão difícil cuidar de todos com a qualidade e a atenção que precisam!E, muitas vezes tratada a causa do internamento, subsiste a necessidade da pessoa se manter internada por falta de resposta para a sua condição de dependência, por isso a permanência de pessoas idosas e com demência no serviço de internamento, para além do estritamente necessário, acarreta riscos e degrada mais rapidamente as poucas capacidades autónomas ou interdependentes que ainda possuem. O ambiente hospitalar é hostil, tudo está pensado para ser simples, eficaz, fácil de limpar e manter controlo de infeção. As cores e o mobiliário tendem a ser monocromáticos, a alimentação vem preparada nos mesmos recipientes, eles também monocromáticos e pensados para a eficácia, tudo é impessoal. Os rostos dos profissionais mudam constantemente, pela dinâmica das equipas e do trabalho por turnos. As pessoas idosas internadas perdem as suas referências e os profissionais, principalmente os enfermeiros, focados no que é urgente e imediato não dispõem do tempo necessário para cuidar destas pessoas como seria necessário. Por vezes, dispomos de equipamentos tecnologicamente diferenciados, mas escasseiam os enfermeiros e assistentes operacionais, escasseia o tempo e os recursos materiais mais simples para proporcionar os estímulos que mitiguem o “desenraizamento”, a solidão e a progressão da perda cognitiva. É pelo tempo que lhes dedicamos e pela proximidade, que lhes conhecemos o nome, as histórias de vida, as angústias, os arrependimentos, o desejo de regressar à sua casa, os pequenos prazeres que já não podem ter.

Urge tomar medidas que, por um lado, ajudem a melhorar os ambientes onde os doentes são tratados e, por outro, deem melhores condições de trabalho aos enfermeiros para poderem colocar em prática os seus conhecimentos

A perda não se limita aos utentes, os enfermeiros são constantemente confrontados com a decisão de omitir os cuidados adequados para assegurar o que é urgente, imediato e inadiável. O sofrimento ético dos enfermeiros é constante pela consciência da sua impotência para corresponder às necessidades das pessoas que vão cuidando como podem, sem cuidar como sabem que deviam e os utentes precisam! Todos os dias o cenário se repete! Urge agir e criar respostas alternativas nos contextos da comunidade e até institucionais, com redes de apoio, que possam acolher estas pessoas em ambientes adequados que promovam a sua saúde e bem-estar na velhice. Este tem que ser um desígnio de todos! Até porque, esse é o fim que nos espera se não fizermos nada para alterar esta visão industrializada da saúde que se preocupa mais com a produção do que com as pessoas.