“A organização dos trabalhadores em associações sindicais fortes é tão mais importante quanto menor for a responsabilidade do Estado na cobertura de cuidados de saúde e na regulação laboral”
A comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos é um importante momento de reflexão sobre a evolução social e da assistência em saúde em Portugal, que se torna ainda mais pertinente se considerarmos as circunstâncias políticas atuais – um Governo minoritário de centro direita e o crescimento da representação parlamentar da extrema direita.
Desde o 25 de abril de 1974 que a evolução socioeconómica e demográfica modificou tanto as condições de vida que, para todos os que nasceram depois dessa data, não há consciência do valor dos direitos, liberdades e garantias alcançados, ao ponto de se considerar que os mesmos estão adquiridos e não são passíveis de serem postos em causa. Nada mais frágil!
Viver em democracia exige uma responsabilidade individual de cada cidadão, quer na escolha das políticas, quer dos princípios e organização social que pretende no seu país. Claro que a escolha de cada cidadão será confrontada com a visão dos restantes, organizando-se o sistema democrático pela eleição das maiorias que governam, numa dialética permanente que respeite os que, fazendo escolhas minoritárias, devem participar no desenvolvimento do seu país.
Bem sabemos que em democracia nem sempre a maioria governa e que, os elevados níveis de abstenção das últimas décadas, refletem por um lado a desresponsabilização dos cidadãos na escolha do que desejam salvaguardar, ficando à mercê de visões radicais que, com o poder do voto, podem até colocar em causa a própria democracia.
Conhecer e interessar-se pela história recente ajuda-nos a valorizar o presente e a perspetivar o futuro, por isso, hoje, escrevo para todos os portugueses que nasceram depois do dia 25 de abril de 1974!
Segundo a Fundação Francisco Manuel dos Santos desde 1960 perdemos mais de 130 mil nascimentos por ano, a esperança de vida aumentou e o crescimento populacional recente, resultante dos processos migratórios, não é suficiente para reverter o envelhecimento da população. Em Portugal há mais de 3000 pessoas com mais de 100 anos de idade o que é um fator bastante importante a considerar nas políticas sociais e de saúde.
As prestações sociais, como pensões, apoios familiares, por doença ou maternidade, desemprego e RSI (Rendimento Social de Inserção) duplicaram desde 1977 o que evidencia a aposta do reforço do Estado Social atingindo hoje 12% do PIB (Produto Interno Bruto).
Na saúde, com uma série de antecedentes incontornáveis, a Constituição da República de 1976 e a Lei Arnaut em 1979 instituiu uma rede de serviços de cuidados de saúde acessíveis a toda a população, financiada através de impostos – o SNS.
Uma alteração do paradigma dos séculos XIX e XX, em que a assistência na saúde competia às famílias, a instituições privadas e às Caixas Sindicais de Previdência.
Uma curiosidade a realçar!
Os primórdios da assistência de saúde, o subsídio durante a doença, pensões de invalidez e reforma e um pequeno seguro eram assegurados pelas Caixas Sindicais de Previdência. Estes benefícios estavam reservados aos trabalhadores que, por sua iniciativa e organização, criavam Sindicatos Nacionais ou estavam abrangidos pelos Grémios organizados pelos empregadores. O acesso a esta proteção ficava assegurada aos trabalhadores e mais tarde às suas famílias por via de acordo ou de contratos coletivos de trabalho, cabendo ao Estado estabelecer a forma como os patrões e trabalhadores contribuíam para as mencionadas organizações.
Segundo a mesma fonte, as Caixas Sindicais tinham como principal objetivo proteger os trabalhadores em caso de doença, invalidez ou desemprego involuntário — este último, nos termos determinados em legislação especial.
Daqui se pode depreender que, a organização dos trabalhadores em associações sindicais fortes é tão mais importante quanto menor for a responsabilidade do Estado na cobertura de cuidados de saúde e na regulação laboral!
Já em 1944 a Assembleia Nacional discutia a participação do Estado na assistência assumindo duas visões distintas:
– a teoria minimalista, que pugna pela iniciativa privada e pela não intervenção direta do Estado, cabendo-lhe somente uma função supletiva, isto é, de orientação, promoção, tutelar e de inspeção ou fiscalização de todas as atividades assistenciais;
– a teoria maximalista, que defende que cabe ao Estado e à sociedade o monopólio de toda a atividade assistencial, sem qualquer interferência do sector privado.
Nem na ditadura, nem em democracia conseguimos escolher uma destas visões, optamos sempre por soluções intermédias – no Estado Novo com maior pendor para um Estado com maior função supletiva e, desde os anos 70, em democracia assumindo a cobertura universal de cuidados de saúde como uma prioridade, adotando uma estrutura assente em níveis diferenciados de prestação de cuidados.
O povo português é conhecido por ser “de brandos costumes”, a capacidade de adaptação é uma das constantes da alma portuguesa pouco dada a radicalismos, por isso nos confrontamos com a constante indecisão quando temos que fazer escolhas entre algo e o seu contrário. Optamos sempre por pairar entre um extremo e outro, mantendo um certo equilíbrio, que nunca nos levou a grandes crescimentos, mas também nos salvou de alguns desastres sociais!
Em 2024, estamos novamente confrontados com uma visão para a saúde que aposta na desregulação das áreas próprias das profissões, no incremento e apoio à iniciativa privada e à municipalização da saúde, caminhando a passos largos para a visão minimalista da função do Estado na assistência às pessoas. São exemplo disso, medidas do Governo como:
– alargar os cuidados prestados pelas Farmácias Comunitárias;
– abrir projetos pilotos de USF mo-delo C (privadas);
– garantir o acesso a uma Consulta de Especialidade na rede de unidades de saúde convencionadas para este efeito;
– concretizar Sistemas Locais de Saúde flexíveis com participação de entidades públicas, privadas e sociais.
Atualmente cerca de 40% do orçamento anual do SNS já é entregue a serviços convencionados no setor social e privado.
Sabemos que as condições de trabalho dos profissionais no SNS se têm degradado progressivamente e que as suas remunerações são sempre vistas como despesa e não investimento.
O que vamos escolher? Valorizar as carreiras profissionais ou concessionar ao privado e social?