Há momentos na História em que se exige mais do que murmúrios, mais do que pedidos: exige-se uma voz ativa e um passo firme. A ASPE nasceu desse impulso, o de recusar que o trabalho dos enfermeiros fosse tratado como mera estatística da Saúde.
Ao longo de oito anos, a ASPE ajudou a moldar carreiras, a combater desigualdades laborais e a introduzir no debate público a ideia de que cuidar não pode ser um verbo sinónimo de precariedade e de injustiças.
Da nossa intervenção resultou a atual carreira de Enfermagem, publicada em 2019, fruto de um processo negocial impulsionado pela célebre Greve Cirúrgica. Esta não é apenas mais uma vírgula na história da Enfermagem portuguesa, mas sim a prova que a mobilização da classe consegue transformar aquilo que muitos julgam impossível.
É com essa herança que a ASPE encara agora o Anteprojeto de Reforma das Leis do Trabalho, apresentado pelo Governo sob a bandeira da modernização. Contudo, esta suposta modernização parece, afinal, o encobrimento de um retrocesso feito às claras. Atentemos para o que está em causa: a precarização prolongada dos vínculos laborais, o alargamento da facilidade de despedimento pela entidade patronal, a disponibilidade total de quem trabalha, a redução do espaço de negociação coletiva e a limitação do direito à greve. Não se trata apenas de uma alteração normativa: é um ataque direto à espinha dorsal da força laboral.
O Manifesto da ASPE confirma essa leitura com inquietante precisão. A proposta legislativa “constitui um retrocesso civilizacional sem precedentes”e “representa uma ameaça para a vida profissional de todos os Enfermeiros”. A reforma, longe de promover estabilidade, “aumenta e legitima a precarização dos vínculos laborais” e abre caminho à “facilitação dos despedimentos e ao recurso ao outsourcing”.
Num país onde milhares de Enfermeiros já vivem em constante desfasamento pessoal e familiar, promovido por turnos rotativos, bancos de horas abusivos e escolhas dolorosas entre a família e a obrigação assistencial, impor mais um agravamento dos direitos pessoais e laborais revela, mais do que um desconhecimento profundo da realidade, uma desconsideração total por quem mantém os serviços de saúde a funcionar.
Neste Anteprojeto da Reforma das Leis do Trabalho alegam-se aumentos de flexibilidade e produtividade, mas é possível descortinar como o desfecho será outro: desregulação de horários, redução dos direitos de parentalidade e limitação do acesso à formação profissional dos Enfermeiros. Tenta-se suavizar a linguagem, mas na realidade o essencial não é melhorado: quando a lei abre portas à disponibilidade infinita, está a tornar o Enfermeiro um mero recurso descartável.
Os Enfermeiros conhecem de perto o que significa viver sobre horários instáveis, a oscilarem entre turnos e sujeitarem-se a alterações impostas unilateralmente. Os Enfermeiros sabem como diariamente já os pressionam e ameaçam para fazerem horas extraordinárias, que depois ficam meses acumuladas em bolsas de horas ilegais, e sem serem pagas. Não podemos aceitar a legitimação e legalização dessas práticas.
A ASPE entende claramente que o que este Anteprojeto traz é a escolha forçada entre a vida pessoal dos Enfermeiros e os cuidados prestados aos doentes com segurança e qualidade. A fragilidade humana, a compaixão e o toque profissional facilmente se diluem quando a Lei permite que cada trabalhador seja tratado como uma peça substituível numa linha de produção, por isso entendemos que qualquer reforma laboral que fragiliza o trabalhador empobrece não só uma classe em particular, mas todo o sistema laboral.
E foi perante este quadro que surgiu a decisão da ASPE de apoiar a adesão à Greve Geral de 11 de dezembro, convocada pela CGTP-IN e pela UGT, não se tratando de um gesto simbólico, mas de uma clara tomada de posição. Esta posição da ASPE não se reduz à defesa exclusiva dos Enfermeiros, mas sobretudo por reconhecer que a erosão dos direitos laborais atinge todo o edifício social. Quando a Lei facilita despedimentos, dilui proteções parentais ou desvaloriza a formação dos profissionais, não fragiliza apenas uma profissão: corrói a própria ideia de que trabalhar é um ato com dignidade.
Continuamos a defender com convicção de que os profissionais de saúde não podem assistir impávidos ao ataque generalizado dos decisores políticos aos seus direitos fundamentais. E, numa sociedade que tantas vezes pediu aos Enfermeiros que fossem “heróis”, a mínima garantia ética possível é garantir que esses profissionais não vivam acorrentados à precariedade.
O gesto da ASPE não foi de insubordinação, mas de responsabilidade democrática. A Greve não deve ser entendida como sinónimo de rutura: foi um alerta e uma tentativa clara de apelo ao diálogo. Foi um apelo às consciências de quem pode decidir e a firmação que a civilização se constrói com respeito por quem trabalha, com equilíbrio entre os deveres e os direitos de empregadores e trabalhadores e um Estado de Direito que assume que a flexibilidade não pode ser sinónimo de submissão.
Que futuro queremos? Um país que olha o trabalhador como variável descartável, ou um país que o reconhece como sujeito de direitos, centro de dignidade e motor de progresso? Uma greve não muda o mundo de um dia para o outro, mas foi mais um aviso deixado aos decisores políticos: uma linha vermelha desenhada por toda uma sociedade que se recusa a retroceder nos tempos.
Se no passado a Greve Cirúrgica abriu caminho à reestruturação da carreira, talvez agora a Greve Geral tenha sido o clarão que impede o eclipse dos direitos laborais. Podem contar que a ASPE vai erguer a voz dos Enfermeiros, e com ela, mais dignidade e melhores condições de trabalho em todos os setores da Saúde em Portugal.
Juntos Construímos o futuro!
Álvara Silva, Vice-presidente da Direção da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros

