Em 2025, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) celebra 200 anos de história, marcada pela excelência académica, investigação de vanguarda e uma profunda ligação à prática clínica. Sob a direção de João Eurico Cabral da Fonseca, a instituição reforça o seu papel pioneiro na integração entre ensino, ciência e assistência médica, preparando profissionais capazes de liderar a medicina do futuro.
Este ano a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) celebra 200 anos. Como avalia a evolução da instituição ao longo destes dois séculos no contexto da medicina e da formação médica em Portugal?
Em 2025 assinalamos dois séculos de compromisso com a investigação, o ensino e a sociedade. Evoluímos de uma escola, nos seus primórdios, centrada na transmissão de conhecimento, para uma faculdade viva, com forte integração hospitalar e científica, capaz de produzir conhecimento, formar médicos e nutricionistas, inovar em saúde e impactar positivamente o ecossistema da saúde. Fizemo-lo preservando valores de exigência, humanismo, generosidade, honestidade e inclusão. O nosso percurso acompanha, e muitas vezes lidera, a modernização da medicina em Portugal. Chegamos aos 200 anos mais abertos, mais colaborativos e com ideias claras: formar médicos e nutricionistas completos, transformar a prática clínica através da ciência e projetar a FMUL para o top 20 das faculdades de medicina europeias no espaço de 10 anos.

De que forma os Centros Académicos Clínicos contribuem para aproximar a formação académica da realidade da prática clínica?
Os Centros Académicos Clínicos (CAC) foram concebidos para gerar um ecossistema onde ensino, investigação e cuidados médicos se reforçam mutuamente. Assentam numa sinergia das faculdades, os hospitais universitários e os institutos de investigação, almejando um ambiente de ensino de exposição à prática clínica, mas também estimulador do desenvolvimento científico dos estudantes. Por outro lado, pressupõem a criação de condições únicas para que a investigação médica progrida, pela convivência próxima de académicos clínicos, investigadores, perguntas clínicas e condições favoráveis a gerar respostas científicas. Docentes com atividade clínica trazem casos reais para a sala de aula e levam a evidência à cabeceira do doente. A simulação clínica, as rotações interdisciplinares e os projetos de investigação em contexto assistencial permitem aos alunos integrar conhecimentos, competências e atitudes. O nosso CAC foi o primeiro a nível nacional, criado em 2008. Designa-se por Centro Académico de Medicina de Lisboa (CAML) e integra a FMUL, a ULS Santa Maria, a Escola Superior de Enfermagem (ESEL) e o Gulbenkian Institute for Molecular Medicine (GIMM).

Como é que a FMUL prepara os futuros médicos para os desafios atuais do sistema de saúde, incluindo novas tecnologias e medicina personalizada?
Formamos médicos cientificamente capazes, tecnologicamente literatos e humanisticamente robustos. Incentivamos e apoiamos a iniciativa dos estudantes em projetos artísticos, culturais, científicos, lúdicos e de empreendedorismo. Estimulamos a diversidade no currículo optativo e procuramos incluir em todas as fases do ensino alguns aspetos que consideramos nucleares: aprendizagem baseada em problemas e casos; avaliação crítica da evidência e literacia de dados; medicina genómica; medicina de precisão; exposição longitudinal à medicina geral e familiar; aprendizagem apoiada em simulação, quando apropriado; conhecimentos da medicina digital e de inteligência artificial aplicado à medicina; desenvolvimento de competências de comunicação, ética, liderança e trabalho interprofissional; formação em qualidade e segurança do doente. Complementamos esta oferta com um programa opcional de financiamento de projetos de investigação desenvolvidos pelos estudantes (sob tutoria muito próxima de investigadores) e possibilidade de estágios em unidades de investigação e inovação. O objetivo é garantir que cada graduado pela FMUL domine a ciência, adquira as competências fundamentais, compreenda o valor da tecnologia, ganhe agilidade e flexibilidade intelectual, respeito pelo próximo, numa atitude empática e tolerante.
Qual é o papel dos Centros Académicos Clínicos na melhoria da qualidade da assistência aos doentes?
Os CAC têm o potencial das mesmas equipas que ensinam e investigam estarem também na linha da frente da atividade clínica. Há condições únicas para uma atitude inovadora na forma como os indicadores clínicos são monitorizados, como os resultados são avaliados e como a inovação pode ser adotada ou criada. Estão assim criados mecanismos para tornar mais eficientes as vias clínicas, maior adesão às melhores práticas médicas, menos eventos adversos e melhor experiência do doente. A proximidade entre investigação e clínica acelera a adoção de inovação segura, desde algoritmos de apoio à decisão, até terapêuticas avançadas. Os CAC são também a garantia da criação de um polo de atratividade de desenvolvimento das carreiras clínicas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), aliadas ao ensino e à investigação.
Quais são os principais desafios enfrentados hoje pelos Centros Académicos Clínicos e como estão a ser superados?
Os CACs estão pressionados pelas exigências quantitativas do SNS, que não são sensíveis à qualidade, inovação e diferenciação clínica e científica. Por outro lado, os hospitais afiliados aos CACs concentram os doentes com patologias raras e/ou complexas que implicam maiores custos assistenciais e também mais tempo e exigência por parte dos médicos, sem que o SNS tenha um entendimento diferenciado dos custos destes doentes e da forma de avaliar o trabalho destes médicos. Mais recentemente a introdução do regime de dedicação plena no SNS criou uma enorme assimetria salarial entre a carreira clínica e a carreira académica, colocando em risco a existência do pilar principal dos CACs, que são os académicos clínicos.
Como integrar o projeto dos Centros Clínicos Universitários com os Centros Académicos Clínicos existentes?
Vemos o projeto de criação dos Centros Clínicos Universitários (CCU), como uma estrutura facilitadora do funcionamento dos CAC, contribuindo para uma maior integração entre cuidados médicos, ensino, investigação e inovação. Os CCU permitirão uma gestão dos hospitais universitários mais próximas das faculdades e dos institutos de investigação, prevendo a participação de um representante da faculdade nos órgãos de gestão do CCU e um representante hospitalar nos órgãos de gestão da faculdade. Esta estratégia otimiza claramente o funcionamento dos CAC. Este projeto prevê também financiamento alinhado com a complexidade clínica dos doentes e prevê o equilíbrio entre as carreiras académica e clínica. Estas medidas reforçarão o ambiente clínico onde se pratica a medicina de maior complexidade. A minha opinião convicta é de que os CCU atuarão como nós motivacionais essenciais para revitalizar o SNS.
Que parcerias nacionais e internacionais têm sido determinantes para a investigação e inovação em saúde na FMUL?
A dimensão e diversidade da FMUL tem permitido o desenvolvimento científico com impacto internacional em muitas áreas clínicas e científicas, as quais estabeleceram as suas próprias redes de colaboração, que geraram dezenas de protocolos de colaboração científica, maioritariamente europeus, mas também com a Ásia, América do Sul e América do Norte. Há um destaque particular dos nossos programas de colaboração estreita com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade de São Paulo, que incluem o reconhecimento mútuo do grau de medicina para detentores de mestrado e/ou doutoramento, a nossa colaboração com a Universidade de Harvard para o desenvolvimento da medicina de catástrofe e humanitária, o apoio que demos ao desenvolvimento do primeiro curso de medicina em Macau, na Macau University of Science and Technology e a nossa mais recente pareceria com a Universidade de Macau para o desenvolvimento de um curso de medicina desenhado com base no nosso e com a nossa participação na direção institucional e no ensino direto, com início previsto para 2028. A nível local a nossa investigação tem sido alicerçada no consórcio CAML, que permite a colaboração estreita com a ULS de Santa Maria e com os recursos para investigação laboratorial desenvolvidos no Instituto de Medicina Molecular (IMM), estrutura criada pela FMUL para otimizar a investigação de base laboratorial. Mais recentemente a fusão do IMM com o Instituto Gulbenkian de Ciência levou à criação do GIMM. É nesta estrutura que uma parte da nossa investigação é alicerçada, numa pareceria fantástica com o Hospital de Santa Maria, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação La Caixa e Fundação Arica. A outra parte do nosso investimento em investigação encontra-se organizada no Medicine.Ulisboa for Health, Innovation and Clinical Research (MUCHRI) que unifica toda a investigação na FMUL e faz a ligação ao GIMM e ao Hospital de Santa Maria. O MUCHRI faz também a ligação com a nossa parceria com a Câmara Municipal de Torres Vedras e com a Caixa Agrícola de Torres Vedras para o desenvolvimento de um projeto centrado no conceito da Saúde Global, designado por Medicine.ULisboa campus de Torres Vedras.

Que tendências ou áreas emergentes na medicina acredita que serão determinantes para a próxima década e que estão já a ser exploradas na FMUL?
Há uma área de enorme impacto clínico, educacional e científico transversal – a inteligência artificial (IA). A IA constitui um mecanismo revolucionário de apoio à interação com o doente (captação, estruturação e registo da informação clínica instantânea, libertando o médico para maior contacto visual e empático), à decisão clínica (amplia a “visão” clínica suportando-a com informação pertinente em tempo real, acelera processos e introduz camadas adicionais de segurança para o doente), à interpretação da informação digital (particularmente exames de imagem e de anatomia patológica) e ao desenvolvimento científico (gestão de dados, integração). A FMUL desenvolveu um grande projeto designado por MedTech Next em que se introduz a IA no ensino e na investigação. O outro componente educacional e científico prioritário é o conceito de Saúde Global (integração de todos os aspetos que rodeiam o ser humano de forma interligada e que condicionam a saúde humana e os ecossistemas que a rodeiam), o qual se cruza com o envelhecimento populacional, as doenças crónicas e os cuidados interdisciplinares, as mudanças climatéricas e as catástrofes naturais. A FMUL priorizou toda esta realidade num espaço complementar ao seu campus principal, o Medicine.ULisboa campus de Torres Vedras, atualmente em desenvolvimento.
Considero que a Medicina Personalizada, nas suas múltiplas vertentes, será determinante para o futuro da medicina: capacidade de identificação de fatores de risco para as doenças e marcadores precoces de diagnóstico; determinação do prognóstico e ajuste das estratégias terapêuticas em função disso; previsão individualizada da resposta aos medicamentos, aumentando a sua eficácia e segurança. A FMUL mantém a sua estratégia de investigação de translação e clínica nesta área com os parceiros (GIMM, ULS Santa Maria e ESEL) e as infraestruturas do CAML: biobanco, centro de investigação clínica, comissão de ética e programa doutoral.
Procuramos criar as condições ideais para formar os futuros líderes dos cuidados clínicos e da ciência médica da segunda metade do século XXI.
Olhando para os próximos anos, qual é a visão da FMUL para os Centros Académicos Clínicos e o seu papel na transformação da saúde em Portugal?
Ambicionamos para todos os CACs aquilo que desejamos para o nosso CAML: mais robusto, aberto à cidade e ao país, e capaz de acrescentar valor aos cuidados médicos, gerar avanços científicos com impacto prático e formar profissionais de saúde tecnicamente competentes, empáticos, tolerantes e motivados para fazer a diferença. Vamos consolidar infraestruturas partilhadas para o desenvolvimento da nossa missão, acelerar a nossa capacidade nos ensaios clínicos, fortalecer a formação contínua dos profissionais de saúde e aprofundar a colaboração com o SNS e a comunidade. Queremos ser um “living lab” de estratégias de saúde baseadas em evidência, onde se experimenta, mede e se implementa e difunde o que resulta bem.
Celebrar os 200 anos da FMUL é uma oportunidade de compreendermos que esta instituição tem a responsabilidade, o dever e as capacidades de ajudar a desenhar, com ciência e humanidade, as próximas décadas da saúde em Portugal.

