: 1 de Setembro, 2025 Redação:: Comentários: 0

“SNS24 fala a enfermeira Maria, em que posso ajudar?”  é esta a frase que centenas de grávidas ouvem todos os dias quando ligam para a linha. Mas o que não sabem é que, muitas vezes, não estão a falar com uma enfermeira especialista em saúde materna, mas sim com um profissional generalista, limitado por um algoritmo desajustado da realidade e pressão superior para ser menos humano e mais automatizado.

E quem são essas mulheres que ligam? Podem estar numa gravidez planeada ou inesperada, podem sentir alegria ou medo, podem estar doentes, com náuseas constantes, com dúvidas que se multiplicam a cada dia. Podem estar a entrar em trabalho de parto, a viver um aborto espontâneo ou a pedir ajuda para interromper uma gravidez. São vizinhas, amigas, irmãs, colegas, esposas. São mulheres reais, em momentos decisivos e frágeis, que merecem o melhor cuidado. O que recebem, muitas vezes, é apenas um simulacro de apoio.

A linha SNS Grávida tornou-se um produto de marketing enganoso. É apresentada como especializada, mas nunca houve qualquer esforço sério em captar e fixar enfermeiros especialistas em saúde materna. O Ministério da Saúde preferiu manter a ilusão, explorando profissionais a recibos verdes, anos a fio, sem contrato, sem condições dignas. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as urgências obstétricas encerradas, partos feitos em ambulâncias, crianças a nascer na rua. E, em vez de se responsabilizar o Governo pela falência do sistema, culpa-se o bombeiro que não chegou a tempo ou o enfermeiro que não conseguiu prever o imprevisível.

A situação repete-se em todo o SNS24. A linha tornou-se uma bandeira política, mas continua a ser sustentada por profissionais em precariedade, avaliados apenas por números e explorados até à exaustão. O serviço atende de tudo: uma febre numa criança, uma dor no peito num adulto, um idoso com sintomas de AVC, uma grávida com contrações, uma pessoa em crise de ansiedade ou com ideação suicida. É por isso que precisa de todas as especialidades de enfermagem e de enfermeiros experientes, capazes de responder com rigor e segurança a cada situação.

Mas, em vez de investir nos profissionais certos, o Governo prefere improvisar. Vende-se a mentira de que é obrigatório ligar antes de ir à urgência – nunca foi lei! Diz-se que a linha é responsável por falhas nos hospitais ou nos centros de saúde, quando isso não é verdade. O caos da burocracia hospitalar, a falha em comunicar quais serviços estão abertos ou fechados e as campanhas de desinformação nos próprios serviços não são responsabilidade da linha. Mas em Portugal a regra é sempre a mesma: passar a batata quente e culpar o SNS24.

E a hipocrisia vai mais longe. Alguns médicos de família criticam hoje as teleconsultas da linha, acusando-a de lhes “roubar” utentes. Mas omitem um detalhe essencial: são eles próprios, especialistas em Medicina Geral e Familiar, que realizam essas teleconsultas no SNS24. Atacam em público aquilo que praticam em privado. E esquecem que a linha não lhes retira utentes – faz exatamente o que sempre pediram: filtrar casos, aliviar a sobrecarga e dar resposta imediata.

O mesmo acontece com as urgências fechadas por “falta de médicos”, quando muitos desses profissionais estão disponíveis dentro das instituições ou para trabalhar à tarefa. É a mesma lógica: em vez de investir nos recursos profissionais que garantem segurança, improvisa-se! E, no fim, o SNS24 é transformado no bode expiatório de um sistema em colapso, enquanto os verdadeiros responsáveis se escondem atrás da propaganda.

O caminho a seguir é evidente. Acabar com a precariedade dos contratos, valorizar a experiência e a competência e atrair enfermeiros com remunerações dignas, designadamente enfermeiros especialistas. Criar grupos dedicados exclusivamente ao apoio e supervisão em áreas críticas, como a saúde materna e obstétrica, a saúde infantil ou a saúde mental. Contratar enfermeiros especialistas com experiência reconhecida e formar equipas onde especialistas orientam generalistas em situações mais simples, garantindo qualidade e segurança em cada atendimento. Estratégias de gestão básicas e medidas de organização simples, possíveis, eficazes, mas constantemente ignoradas por quem está mais interessado em fazer política do que em resolver problemas!

Em vez disso, o Governo insiste em entregar a triagem clínica a outros profissionais, como os farmacêuticos, que não têm formação nem competência legal para o fazer. Isto não é reforçar o SNS24 – é fragilizá-lo. É uma usurpação das funções dos enfermeiros, um atentado contra a segurança dos utentes e um insulto aos profissionais que dedicam a vida a cuidar.

O recado é claro: o SNS24 não pode continuar a ser o bode expiatório nacional. As grávidas não podem ser enganadas por propaganda barata. Os enfermeiros não podem ser usados como carne para canhão, num sistema precário. Os cidadãos não podem continuar a ser tratados como números.

É inaceitável que, em Portugal, apenas os problemas dos médicos encontrem resposta rápida e soluções políticas. Não podemos continuar a ignorar quem verdadeiramente sustenta o SNS24 e grande parte do Serviço Nacional de Saúde: os enfermeiros. Representamos a classe com maior número de profissionais, somos a base operacional do sistema e os que asseguram diariamente a continuidade dos cuidados, mesmo em condições precárias. Desvalorizar esta realidade não é apenas injusto para os profissionais, é comprometer a segurança e a qualidade da resposta em saúde para toda a população.

A saúde em Portugal está em ruínas. Fingir o contrário é mentir. E na Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros – ASPE não aceitaremos que continuem a transformar a linha SNS 24, que salva vidas todos os dias, num palco de propaganda política e num saco de pancada conveniente.

E se continuarem a insistir nesse caminho, talvez esteja na altura de utilizar a vantagem de os enfermeiros estarem contratados como prestadores de serviço – não dar disponibilidades durante uns dias e deixar que outros tentem substituir-nos.

Talvez a realidade ative as consciências!

Lúcia Leite, Presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros

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